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Publicações e Posts

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O vídeo da 'pizza queimada' e mais uma tentativa fracassada de 'refutar Marx'



Há um videozinho (https://www.youtube.com/watch?v=tD5jg00nXQo) de três minutos no Youtube que procura ridicularizar a teoria do valor proposta por Karl Marx, mostrando que uma pizza queimada tem mais tempo de trabalho do que uma pizza ao ponto, mas não tem valor. O autor do vídeo pretende mostrar como é absurda a proposição de Marx de que o valor da mercadoria consiste no tempo de trabalho que existe nela. O problema é que o autor do vídeo... não leu Marx. Tentou ridicularizar algo que desconhece.

Os três livros de O Capital têm somados aproximadamente duas mil páginas. Mas é logo no início, na quarta página do primeiro capítulo do primeiro livro está escrito:

"Poderia parecer que, se o valor de uma mercadoria é determinado pela quantidade de trabalho despendido durante sua produção, quanto mais preguiçoso e inábil for um homem, maior será o valor de sua mercadoria, pois ele necessitará de mais tempo para produzi-la. No entanto, o trabalho que constitui a substância dos valores é trabalho humano igual, dispêndio da mesma força de trabalho humana. A força de trabalho conjunta da sociedade, que se apresenta nos valores do mundo das mercadorias, vale aqui como uma única força de trabalho humana, embora consista em inumeráveis forças de trabalho individuais. Cada uma dessas forças de trabalho individuais é a mesma força de trabalho humana que a outra, na medida em que possui o caráter de uma força de trabalho social média e atua como tal; portanto, na medida em que, para a produção de uma mercadoria, ela só precisa de tempo de trabalho em média necessário ou tempo de trabalho socialmente necessário. Tempo de trabalho socialmente necessário é aquele requerido para produzir um valor de uso qualquer sob as condições normais para uma dada sociedade e com o grau social médio de destreza e intensidade do trabalho. Após a introdução do tear a vapor na Inglaterra, por exemplo, passou a ser possível transformar uma dada quantidade de fio em tecido empregando cerca da metade do trabalho de antes. Na verdade, o tecelão manual inglês continuava a precisar do mesmo tempo de trabalho para essa produção, mas agora o produto de sua hora de trabalho individual representava apenas metade da hora de trabalho social e, por isso, seu valor caiu para a metade do anterior.

Portanto, é unicamente a quantidade de trabalho socialmente necessário ou o tempo de trabalho socialmente necessário para a produção de um valor de uso que determina a grandeza de seu valor. A mercadoria individual vale aqui somente como exemplar médio de sua espécie. Por essa razão, mercadorias em que estão contidas quantidades iguais de trabalho ou que podem ser produzidas no mesmo tempo de trabalho têm a mesma grandeza de valor. O valor de uma mercadoria está para o valor de qualquer outra mercadoria assim como o tempo de trabalho necessário para a produção de uma está para o tempo de trabalho necessário para a produção de outra. “Como valores, todas as mercadorias são apenas medidas determinadas de tempo de trabalho cristalizado”. (Marx, 2017)"


Sim, isso mesmo. O moleque quis “refutar Marx”, mas poderia ter percebido a bosta que estava produzindo se tivesse lido até a página 4 do Capital, algo que não fez. Como é possível verificar, Marx explicou muito bem o que é trabalho SOCIALMENTE NECESSÁRIO e que o que determina o valor de uma mercadoria é o tempo de trabalho SOCIALMENTE NECESSÁRIO. Se dada a técnica de produção existente em uma sociedade e a habilidade média dos trabalhadores faz com que na média uma determinada mercadoria leve uma hora para ser produzida, o tempo de trabalho socialmente necessário para produzir esta mercadoria é de uma hora. Se uma fábrica com técnicas antiquadas e trabalhadores inábeis demorar cinco horas para produzir essa mesma mercadoria, seu valor não será equivalente a cinco horas de trabalho socialmente necessário.

No caso da pizza, o tempo de trabalho socialmente necessário para produzi-la seria o tempo para preparar, o tempo para assar, o tempo para produzir os ingredientes e uma parcela do tempo para produzir o forno. Se um forno for capaz de assar dez mil pizzas durante seu período de vida útil, um décimo milésimo do tempo de trabalho para produzir o forno será adicionado em cada pizza.

De acordo com Marx, o sistema capitalista é um sistema em que a produção de mercadorias tem como objetivo valorizar o capital. O processo ocorre da seguinte maneira: um capital (C) decide produzir mercadorias, e para isso adquire edifícios, máquinas e matérias-primas, chamados de capital constante (c), e contrata força de trabalho, chamada de capital variável (v), pagando salários. Então, C=c+v. O capital se valoriza porque o valor que os trabalhadores produzem é superior aos seus salários. Este valor adicional é chamado de mais-valor (m) (os leitores mais velhos provavelmente conhecem o termo “mais-valia”, mas o autor deste texto lê a edição da Boitempo de 2017, em que a tradução usa o termo “mais-valor”). O capital valorizado é chamado de C’, que pode ser calculado como C’=c+v+m. Equipamentos e matérias-primas são chamados de capital constante porque apenas transmitem seu valor para a mercadoria. A força de trabalho é chamada de capital variável porque é o trabalho que faz aumentar o valor. É importante não confundir com os conceitos de “custo fixo” e “custo variável” da microeconomia convencional.

Cada mercadoria tem em seu valor o capital constante, o capital variável e o mais-valor utilizados na sua produção. Aparentemente, apenas o capital variável e o mais-valor são trabalho. Mas os edifícios, as máquinas, as ferramentas, os equipamentos, a energia e as matérias-primas, presentes no capital constante, também são mercadorias, também passaram pelo ciclo capitalista de produção de mercadorias, e também foram produzidos através do trabalho. Portanto, seria possível dizer que o valor das mercadorias está no trabalho que elas contém.

No capítulo 10 do primeiro livro de O Capital, Marx tratou do caso oposto daquele discutido aqui. Falou da possibilidade de um capitalista individual introduzir uma nova técnica que permite produzir uma determinada mercadoria em um tempo de trabalho abaixo do socialmente necessário. Neste caso, este capitalista venderia seu produto pelo valor do trabalho socialmente necessário e obteria um mais-valor extra. Quando os capitalistas concorrentes copiarem a nova técnica, o novo tempo de trabalho passa a ser o socialmente necessário. Assim ocorre o progresso técnico no capitalismo. Um leigo na obra de Marx poderia estranhar a relação de valor com o trabalho e perguntar: “mas é só o trabalho?”, “não é a oferta e demanda que determinam o preço de uma mercadoria?”, “não é a satisfação que uma mercadoria causa ao comprador que determina seu preço?”. Para responder a estas perguntas, é necessário dizer que Marx nunca desprezou a demanda. Ele considerava se um bem só se transformava em mercadoria se tivesse valor de uso para o comprador. Sem valor de uso, não havia o “salto” que transformava o bem e mercadoria, mesmo se sua produção requisitasse muito trabalho. E de acordo com os autores que defendem a teoria do valor, preço e valor não são a mesma coisa. O preço teria origem no valor. E não é possível falar apenas em “satisfação” como origem do valor ou do preço. Se nos fosse dada a escolha de obter apenas um destes respectivos bens, oxigênio e Playstation, obviamente escolheríamos oxigênio, porque sem este bem nós não sobreviveríamos. Ainda assim, Playstation custa dinheiro e oxigênio não porque existe trabalho necessário para produzir Playstation, mas não para produzir oxigênio. Pelo menos por enquanto.

A conclusão que Marx chegou com a teoria do valor trabalho é que o capitalismo, mesmo sendo um sistema de troca de mercadorias entre seres humanos iguais perante a lei, é um sistema em que uma classe social usufrui do trabalho de outra, ou seja, um sistema de exploração. No feudalismo e no escravagismo, a exploração era explícita. A desigualdade existia até na lei. No capitalismo, a troca voluntária de mercadorias seria um véu que acoberta uma relação social de exploração. Marx demonstrou que a valorização do capital não ocorre na simples troca de mercadorias. Não é possível explicar que existe lucro pela possibilidade de comprar barato e vender caro uma mercadoria, porque, neste caso, seria necessário explicar como o sujeito que comprou caro obteve o dinheiro para poder fazer a compra. Podemos considerar um exemplo. Existem três pessoas, A, B e C. Inicialmente, A tem um pão e R$11, B tem uma garrafa de vinho e R$11, e C tem um livro e R$11. A compra o livro de C por R$10 e vende para B por R$11, B compra o pão de A por R$10 e vende para C por R$11, e C compra a garrafa de vinho de B por R$10 e vende para A por R$11. Os três compraram uma mercadoria por R$10 e venderam por R$11. Mas antes da circulação, A, B e C somados tinham um pão, uma garrafa de vinho, um livro e R$33, e depois da circulação, A, B e C somados continuaram tendo um pão, uma garrafa de vinho, um livro e R$33. A circulação não adicionou qualquer valor. A única mercadoria que adiciona valor quando entra na circulação é a força de trabalho.

A teoria do valor trabalho não foi uma invenção de Karl Marx. Foi desenvolvida anteriormente por Adam Smith e David Ricardo. Mas ainda assim, Marx não foi uma continuação de Smith e Ricardo, e sim uma ruptura. Ao sustentarem que o trabalho é a medida real do valor de troca dos bens, Smith e Ricardo afirmaram que o trabalho é o conteúdo natural das relações fundadas na troca. A troca de mercadorias faria parte da natureza do ser humano (Belluzzo, 1980). Marx, por sua vez, considerava que o valor nada tinha de natural. Para ele, a ilusão de que as mercadorias têm um valor natural é o fetichismo da mercadoria (há um texto na Voyager explicando o que é o fetichismo da mercadoria). O valor seria resultado de uma relação social, em que a produção tem como propósito valorizar a riqueza privada. Esta relação social não seria natural e sim construída em um determinado lugar em um determinado período na história (para especificar, este lugar é a Grã-Bretanha e este período é o século XVIII).

Quer dizer que a teoria do valor trabalho defendida por Marx não tem problemas? Na verdade tem, o próprio Marx reconheceu isso no livro 3 de O Capital. Há uma dificuldade de converter valor em preço. Isto porque mercadorias têm composição orgânica diferente de capital. Algumas têm maior composição de máquinas e matérias primas, ou seja, um v/c pequeno e outras têm maior composição de força de trabalho, ou seja, um v/c grande. Neste caso, é impossível que duas mercadorias diferentes, com composições orgânicas diferentes de capital, tenham ao mesmo tempo a mesma taxa de mais-valor, que é m/v, e a mesma taxa de lucro, que é m/(c+v). E assumindo que a mobilidade do capital iguale as taxas de lucro na produção de diferentes mercadorias, torna-se difícil utilizar o m+c+v para determinar preços. Muitos economistas políticos marxistas do século XX debruçaram-se sobre esta questão, e Sraffa conseguiu demonstrar que o valor não pode ser utilizado para determinar o preço de uma mercadoria individual, mas pode ser utilizado para determinar o preço de um conjunto de mercadorias (Nicolau, 1989).

Mas mesmo existindo alguns aspectos questionáveis da teoria do valor trabalho defendida por Marx, a pizza queimada não é um deles. Ele mesmo explicou isso sem deixar qualquer margem a dúvidas na página 4. Ninguém é obrigado a ler Marx, mas quem deseja pensar que pode refutá-lo precisa ler sim, e não ignorar algo que está escrito de quarta página de uma obra de quase duas mil páginas.

Pessoas que acham que refutam Marx com o videozinho da pizza queimada merecem todo o nosso desprezo por três motivos:

1) Porque são intelectualmente preguiçosas: querem refutar um autor, mas têm preguiça de ler até mesmo até a quarta página de sua obra principal. Devemos ter respeito e tolerância com pessoas que não tiveram oportunidade de ser instruídas, seja porque os pais não tiveram instrução, seja porque não tiveram condições de frequentar boas escolas, seja porque precisaram trabalhar cedo, mas não devemos ter respeito e tolerância com pessoas que são incultas por preguiça

2) Porque são arrogantes: é muita pretensão pensar que podem “destruir” com um simples videozinho um pensador estudado por economistas, filósofos, sociólogos, antropólogos, historiadores, geógrafos e pedagogos que dedicam um longo tempo de sua vida aos estudos. Um pensador desses pode estar errado, mas dada a sua importância, é preciso ter discernimento para perceber que não é um videozinho que vai destruí-lo. Os autores da Voyager não concordam com Milton Friedman e Friedrich von Hayek, mas sabem que não é com videozinhos de três minutos que eles serão refutados

3) Porque são elitistas: enxergam muita necessidade em mostrar que Marx estava errado, e para isso tentam refutá-lo até sem ler sua obra, porque sentem necessidade de destruir quem está relacionado a uma orientação política igualitarista. Este tipo de estupidez não atinge apenas Marx. Keynes era muito menos radical, mas também existem liberteens que desejam refutá-lo com argumentos muito bobos.

Esse tipo de gente tenta “provar” que a teoria do valor trabalho está errado porque Marx a defendia. Mas experimentem perguntar para esse tipo de gente por que os Estados Unidos são um país mais rico do que o Brasil. Muito provavelmente responderão que isso ocorre porque “nos Estados Unidos as pessoas trabalham mais”. Ou seja, involuntariamente confirmariam a teoria do valor trabalho.

No momento em que se completam 200 anos de nascimento de Karl Marx, seria muito mais agradável fazer debates de alto nível sobre o pensador alemão. Mas não é possível ignorar imbecis, porque imbecis têm plateia. Por isso, é necessário mostrar que imbecis são imbecis.


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