Foi um pássaro? Foi um avião? Redistribuição no Brasil no século XXI
- Camarada C.
- 31 de ago. de 2018
- 24 min de leitura

Introdução
O congelamento dos gastos sociais brasileiros pelos próximos vinte anos efetuado pela emenda constitucional de dezembro de 2016 marcou a interrupção do experimento de redistribuição levado a cabo na década precedente e, com ela, o adiamento sem horizonte previsível de uma esperança. Trata-se, evidentemente, da esperança de social-democratização do estado social brasileiro. É preciso avaliar, com a objetividade possível, o que se perdeu e o que é razoável esperar. Quão valioso de fato foi o avanço da última década? Que lacunas deixou? Como se relacionam, avanços e lacunas, com a Carta de 1988? O que se pode esperar das alterações em marcha no capítulo de direitos sociais da Constituição?
Neste ensaio, procuro encaminhar respostas a esses problemas e aqui adianto cinco proposições que refletem minhas convicções atuais: 1) o experimento redistributivo foi importante; 2) não se limitou a “social safety nets”; 3) virtudes e vícios de origem remontam à Constituição de 1988; 4) a esperança foi mais uma vez adiada nos serviços sociais públicos e na tributação; 5) a reorientação recente da política social, marcada pelo teto do gasto e por reformas em andamento na proteção social, prenuncia a assistencialização da previdência e a focalização dos serviços nos mais pobres.
Nas conclusões, especulo sobre raízes, nos sistemas de crenças dos principais atores políticos envolvidos, do acanhamento do experimento redistributivo no que se refere à expansão de serviços sociais universais e à tributação progressiva. Em particular, a ausência que me parece mais notável na política da política social brasileira é justamente de uma perspectiva genuinamente social-democrata.
O experimento redistributivo foi importante
O decênio entre os anos 2003 e 2014 testemunhou a maior redução histórica da pobreza absoluta em quase quatro décadas no Brasil, desde 1976.2 A queda de dezoito pontos percentuais fez a população pobre recuar para um décimo da população total. A título de comparação, vale mencionar dois outros importantes episódios no período: o imediato pós-Plano Real, quando a variação foi de cerca de sete pontos (entre 1993 e 1995), com estabilidade nos anos subsequentes da década de 1990; e a segunda metade da década de 1970, quando a incidência da pobreza recuou quatorze pontos percentuais (entre 1976 e 1986), tendo se estabilizado na década seguinte.
A pobreza relativa, indicador que, para além de insuficiências materiais, expressa iniquidades e permite comparações internacionais, também se reduziu perceptivelmente. Após estabilidade na década de 1990, a pobreza relativa diminuiu consistentemente entre 2004 e 2014 (de 26% para 22% da população, ver Gráfico 1), estreitando a brecha entre o Brasil e as economias avançadas. Na verdade, enquanto se contraía no Brasil, a pobreza relativa crescia nos países desenvolvidos (de 10,5% para 11,1%).
A convergência observada entre o Brasil e os países desenvolvidos decorreu não apenas de movimentos globais que favoreceram o crescimento da renda nos países periféricos como também de políticas redistributivas aqui adotadas. Se compararmos os períodos de redução da pobreza no Brasil após meados dos anos 1960, a década em análise se destaca como a única em que a queda da pobreza se associou à redução consistente das desigualdades — não tendo resultado exclusivamente do crescimento.
Quanto à desigualdade de renda propriamente, quedas significativas foram captadas por vários índices e razões. O índice mais comumente usado, o coeficiente de Gini, captou uma queda de sete pontos percentuais entre 2002 e 2014 (de 59% para 52%, ver Gráfico 1). O ritmo foi superior ao observado ao longo do século passado em economias avançadas, enquanto transitavam de altos patamares para os relativamente baixos padrões atuais de desigualdade.
É bem verdade que cálculos recentes, com base em tabulações das declarações de imposto de renda, chegaram a conclusão diversa. Desigualdades muito altas no topo da distribuição, bem mais elevadas que as observadas quando computados dados de pesquisas domiciliares, se tornaram visíveis—e mais do que altas, resultaram persistentes, justamente ao longo da década de ouro da redistribuição brasileira.
Segundo estimativas, em 2012, os 1% mais ricos se apropriaram de 25% da renda e os 0,1%, de 10% da renda, ou seja, 25 vezes e cem vezes sua participação percentual na população. Não há como relativizar o abismo que separa esses grupos de, respectivamente, 2 milhões e 200 mil pessoas do restante da população brasileira—e não é difícil imaginar a influência sobre decisões coletivas que emana desse poder econômico desproporcional.
Gráfico 1
Evolução da pobreza absoluta e relativa e da desigualdade no Brasil (2002–2014)

Cabem aqui duas observações: a concentração de renda no topo está crescendo mundo afora, indicando um ambiente à parte, intocado pelas intervenções redistributivas costumeiras (transferências e serviços), as quais atuam mais pela via dos gastos do que da tributação progressiva. O Brasil é apenas o caso clínico favorito, com a sua singularmente elevada concentração no topo. A segunda é que a desigualdade de renda no Brasil, mesmo quando medida em abstração dos rendimentos desses grupos (que tendem a ser subdeclarados em pesquisas domiciliares como a PNAD/IBGE), é alta o suficiente para ter merecido, em 2002, o desabonador título de campeã mundial. Não deixa de causar admiração o recuo em uma década para a 13ª posição. Nesse sentido, parece razoável avaliar o esforço redistributivo recente—sua magnitude, seu ritmo—como ao mesmo tempo significativo e, obviamente, insuficiente. Repetindo: a redução de 0,6 ponto de Gini por ano durante doze anos consecutivos superou o ritmo de redistribuição em países desenvolvidos no pós-guerra (apenas a Espanha teria excedido esse ritmo).
Em paralelo à dinâmica da pobreza relativa, o comportamento das desigualdades no Brasil seguiu trajetória inversa à observada nas economias avançadas. À queda anual de mais de 1% no índice de Gini entre 2001 e 2009 no Brasil correspondeu o aumento anual médio de 0,25% nos países da OCDE—o que se deveu simultaneamente a mudanças nos termos de troca globais e sinais inversos nas políticas regulatórias. Em particular, enquanto o Brasil regulava (e monitorava a regulação de) seus mercados de trabalho, países avançados os desregulamentavam a ponto de institucionalizar informalidades nos contratos formais de trabalho.
A comparação com outras regiões igualmente favorece o esforço redistributivo brasileiro. Por exemplo, o bloco latino-americano experimentou redução anual média de 0,6%, ligeiramente inferior à brasileira na primeira década do século corrente (1,07% a. a. entre 2001 e 2009). Mas o contraste com países do bloco dos Brics, como China e Índia, é ainda mais significativo. Estes últimos experimentaram rápidas taxas de crescimento, acompanhadas de importante redução da pobreza e aumento das desigualdades. Entre o início dos anos 1990 e meados da primeira década do século atual, o índice de Gini registrou aumento de cerca de 2% ao ano na China e de 1,4% ao ano na Índia.
Portanto, também como estilo alternativo de crescimento o experimento brasileiro desperta interesse tanto prático quanto teórico. Políticas que interferiram na distribuição de renda, contribuindo para aumentar a renda disponível dos estratos inferiores e assim suavizando desigualdades econômicas, estimularam a demanda de consumo doméstico, cujo aumento liderou o crescimento do produto e da renda verificado no período. A questão da relação entre crescimento e desigualdade é de interesse perene para os economistas do desenvolvimento (não apenas para eles!): o caso brasileiro ilustra não a inevitabilidade, mas certamente a praticabilidade de uma relação virtuosa.
O experimento não se limitou a criação e expansão de redes de segurança social
A política que mais efetivamente contribuiu para amortecer a desigualdade na distribuição de renda no Brasil foi a valorização do salário mínimo—é o que emerge de pesquisa empírica recente empenhada em isolar o peso desse fator. O comportamento fortemente simétrico da valorização do mínimo em relação à evolução da desigualdade da renda domiciliar sugeria essa linha de investigação, e a análise empírica terminou por corroborar a hipótese inicial. É, pois, destituída de base factual a afirmação de que no Brasil a redução da desigualdade decorreu principalmente de programas de renda afinados com ou mesmo inspirados em recomendações neoliberais do Fundo Monetário Internacional ou do Banco Mundial.
De fato, à importante recuperação do valor real do salário mínimo, equivalente a mais de 110% de valorização em duas décadas (acima de 70% entre 2004 e 2014), correspondeu uma contribuição pouco superior a 70% para o declínio da desigualdade da renda domiciliar ocorrida no país entre 1995, ano em que a recuperação do valor real do salário mínimo teve início, e 2013—ou 64% da redução, se o último ano considerado for 2014. Ademais, comparação parcial entre o impacto redistributivo do Programa Bolsa Família (PBF) e o da política do salário mínimo para o período entre 2006 e 2011 indica que este último foi quatro vezes maior que o primeiro.
Gráfico 2
Evolução do salário mínimo real e coeficiente de Gini (1995–2016)

Contraintuitivamente, o principal canal por meio do qual o salário mínimo afetou a desigualdade foram as transferências governamentais—não o mercado de trabalho—, em particular, a previdência social. Isso se explica pelo fato de 60% das aposentadorias do sistema público terem o valor exato do salário mínimo. Se se considerar o Benefício de Prestação Continuada (BPC) como uma espécie de aposentadoria não contributiva, resulta que a previdência como um todo, contributiva e não contributiva, foi responsável por pouco menos de metade da redução da desigualdade (46%–47%). Esse resultado sugere uma reapropriação das políticas previdenciárias como efetivo instrumento de redistribuição, especialmente por via da elevação do piso das aposentadorias.
No mercado de trabalho, responsável por pouco mais de um terço do efeito total do salário mínimo sobre a desigualdade, mudança qualitativa nas relações de trabalho contribuiu para amplificar o alcance redistributivo do mínimo. Possivelmente a mais consequente foi a formalização dos empregos que reverteu a dinâmica das décadas de 1980 e 1990 nas quais a informalidade prosperava. A informalidade, definida como privação de acesso à proteção social no mercado de trabalho, recuou mais de dezesseis pontos percentuais entre 2004 e 2014, para 34% da força de trabalho ocupada. Em confronto com outras formas de segmentação do mercado de trabalho, a formalização sobressaiu como o componente com o maior peso na redução da desigualdade salarial. Tal fenômeno não decorreu exclusivamente do crescimento econômico—essas relações não costumam ser automáticas, haja vista a coabitação na década de 1990 de anos de crescimento com aumento da informalidade. A intervenção pública foi o ímpeto decisivo. Destacaram-se inovações institucionais e legislativas, monitoramento dos postos de trabalho e ação efetiva da justiça do trabalho. Entre as inovações institucionais estão as medidas que facultaram aos trabalhadores em relações de trabalho informais (por exemplo, sem contrato de trabalho ou na condição de trabalho por conta própria ou sem remuneração) contribuírem para a previdência, seja como micro-empreendedores (programa Microempreendedor Individual, MEI), seja como contribuintes individuais, e a simplificação tributária e o acesso a crédito de bancos públicos, que estimularam a formalização de negócios. A formalização das relações de trabalho assumiu, não obstante e principalmente, forma plena (70% da redução da informalidade), isto é, envolveu o acesso à proteção social em conjunto com a observância de direitos do trabalho garantidos por lei. Entre as medidas legislativas, a mais significativa foi a emenda constitucional que regulamentou o emprego doméstico—com exigência de carteira de trabalho e garantia de jornada de trabalho legal, remuneração mínima e acesso à seguridade social. A PEC do emprego doméstico contribuiu para a redução dessa categoria abstrusa de emprego, seja em números relativos ou absolutos, e para a formalização do emprego remanescente.
Vale mencionar que a valorização do mínimo foi compatível com o crescimento do emprego, sobretudo do emprego formal, contrariando expectativas teóricas de uma relação negativa. Em outros termos, o caso brasileiro ilustra a possibilidade de uma relação positiva entre distribuição e emprego: a despeito da valorização do mínimo na década recente, o emprego formal cresceu a um ritmo ainda mais rápido que o do produto. Esse crescimento representou formalização de empregos informais e criação de novos empregos formais.
Característica transversal do movimento recente de formalização foi sua incidência em todos os setores produtivos e grupos socioeconômicos, a despeito da clivagem observada (renda, escolaridade, gênero, cor, região ou lugar). Representou, em outras palavras, um novo patamar qualitativo nas relações de trabalho no Brasil, suavizando diferenciações ou vantagens categoriais. É bem verdade, contudo, que o emprego cresceu principalmente em serviços (e não na indústria, por exemplo, que tem a reputação de deter os bons empregos): o emprego no setor de serviços ampliou sua representação para 65% do total em 2014, a partir de um patamar de 59% em 2002. Não obstante, o emprego industrial também cresceu em termos absolutos, e os “bad jobs” da agricultura e do serviço doméstico se contraíram absoluta e relativamente. Ademais, a expansão dos serviços seguiu a tendência internacional de mudança estrutural; em economias avançadas, este setor chega a absorver 75% da força de trabalho ocupada.33 Mesmo assim, o rendimento médio do trabalho cresceu ininterruptamente. E muito embora boa parte do novo emprego tenha se concentrado em remunerações até o valor de dois salários mínimos (de um salário mínimo crescente em termos reais, vale notar), a partir de 2006 o crescimento dos empregos (ainda que com flutuações) ocorreu principalmente nos postos com remuneração acima de dois salários.
Desagregação do emprego em serviços revela que entre os novos postos de trabalho prevaleceram os localizados no subsetor de serviços distributivos (comércio e transportes). Não obstante a má reputação, o segmento foi objeto de mudanças positivas em termos de formalização, remuneração e condições de trabalho (por exemplo, redução das horas trabalhadas). Ademais, o subsetor com maior taxa de crescimento do emprego, mesmo que ainda com baixa representatividade (14% dos empregos em serviços), foram os serviços para os negócios. Esses empregos remuneram melhor e (juntamente com o subsetor de serviços sociais) praticam os mais altos níveis de formalização.
Gráfico 3
Porcentagem de ocupados que recebem salários acima de dois salários mínimos, Brasil (2002–2014)

Em contraste com a percepção quase generalizada de que os novos empregos criados, por se localizarem principalmente no setor terciário, seriam de pior qualidade, análise detalhada das PNADs de 2002 a 201435 revela que estavam nos serviços o maior montante de novos empregos formais, os maiores rendimentos médios do trabalho, a maior concentração de trabalhadores mais escolarizados e com ensino superior completo e a maior representação absoluta e relativa de mulheres—isto em que pese ter o emprego doméstico, o bad job típico do setor de serviços, se reduzido, este que é historicamente feminino e que no Brasil tende a ser muito elevado.
Por fim, a desigualdade salarial como um todo recuou (de 55% para 48% de Gini), bem como os diferenciais salariais entre grupos de gênero (de 43,8% para 34,5%) e de cor (de 107,8% para 73,6%, entre não negros e negros). Apesar de ainda elevados (especialmente os diferenciais de cor), os índices se contraíram de modo mais acentuado que na década anterior.
Vale notar que a melhora generalizada do mercado de trabalho brasileiro no período em análise contrasta com sua deterioração em países desenvolvidos e seu desenvolvimento acanhado em países emergentes como China, Índia e África do Sul,39 onde o emprego cresceu mais lentamente, a informalidade aumentou e as desigualdades de rendimentos do trabalho se agravaram.
Em síntese, as melhorias na distribuição do rendimento domiciliar e no mercado de trabalho parecem indelevelmente vinculadas a intervenções de cunho regulatório: a valorização do salário mínimo (e seus efeitos sobre a desigualdade de rendimentos como um todo) e a regulação e monitoramento do mercado de trabalho (com destaque para a formalização publicamente incentivada). No mercado de trabalho, o significado maior da intervenção pública foi apoiar a mercantilização regulada da força de trabalho, isto é, inserção da força de trabalho em um mercado de trabalho mais bem regulado, mediada pois pela garantia de direitos.
O paradoxo da Constituição de 1988
O recuo da desigualdade do rendimento domiciliar no Brasil deve muito à Constituição de 1988. Nela estabeleceu-se o salário mínimo como o piso dos benefícios sociais. Transferências previdenciárias, como as aposentadorias, as pensões, o seguro-desemprego e o abono salarial, e benefícios assistenciais, como o BPC, teriam como valor de base o salário mínimo, e seus regimes de reajuste se vinculariam ao regime do mínimo.
Na prática, isso significou que transferências constitucionais como as aposentadorias e pensões sofreram forte “compressão” (ou diminuição da desigualdade) em suas distribuições. Muito embora nos domicílios individuais os rendimentos do trabalho tendam a ser mais importantes que as transferências, o fato do rendimento do trabalho idêntico ao salário mínimo afetar os salários de apenas um quinto da força de trabalho ocupada no Brasil limita a propagação de efeitos de mudanças em seu valor pela via do mercado de trabalho. A situação se inverte quando consideramos as aposentadorias, que são as transferências de renda mais vultosas: apesar do menor peso no rendimento domiciliar, como já mencionado, cerca de 60% das aposentadorias concedidas no Brasil têm o valor do salário mínimo. Seu impacto na distribuição de aposentadorias acaba por ser significativo e, em consequência, também sobre a distribuição dos rendimentos totais.
A Constituição igualmente prescreveu o valor do mínimo como aquele compatível com uma vida material digna para o trabalhador e sua família. A implicação é que, a ser cumprida a lei, o mínimo deveria sofrer aumentos reais, uma vez que ao longo das décadas de 1960, 1970 e 1980 seu valor, anteriormente próximo ao normativamente definido, se deteriorou em virtude de reajustes sistematicamente aquém da inflação. É apenas a partir de 1995 que o salário mínimo retorna à condição de instrumento de política social, não mais unicamente peça de política de estabilização, sofrendo reajustes que o valorizam em termos reais—ao longo da década de 1990 principalmente por iniciativa do Congresso Nacional e ao longo da primeira década do século atual como política governamental.
A combinação de um mínimo social constitucional idêntico ao salário mínimo com a política de valorização teve como resultante boa parte da redução da desigualdade observada no Brasil—sendo o principal canal, por força da peculiar demografia de benefícios e mercado de trabalho, a previdência (responsável por cerca de 52% do efeito total do salário mínimo sobre a mudança na distribuição de renda). O impacto transmitido pelo canal da proteção social, que reúne previdência e assistência social constitucional (BPC), alcançou 63% do efeito total do mínimo sobre a desigualdade.40 Ao vincular o piso de benefícios ao salário mínimo e ancorar este último em necessidades sociais, a Constituição de 1988 introduziu a renda mínima garantida como um direito social dos brasileiros.
O efeito considerável do salário mínimo sobre a distribuição de rendimentos domiciliares reflete o fato de indivíduos recebedores do mínimo, por quaisquer dos canais analisados, acharem-se concentrados em domicílios cujos rendimentos médios estão abaixo do rendimento mediano (isto é, do meio da distribuição de renda). Uma vez que esses rendimentos são reajustados a taxas acima dos reajustes médios, a distribuição sofre compressão. Estimativas calculam que quase metade da população brasileira é afetada pelo valor do mínimo.41 Dessa forma, por mais que os benefícios do PBF, que atingem cerca de 25% da população brasileira, sejam muito redistributivos na margem (na medida em que transferem alguma renda a muitas famílias com rendas extremamente baixas), eles empalidecem em comparação com o mínimo, que atinge muito mais brasileiros e transfere valores significativamente maiores. Evidentemente, não se trata de negar que as transferências do PBF contribuíram para a redução da desigualdade e da pobreza extrema no país a partir de 2004. Não obstante, a valorização do salário mínimo superou esse efeito.
Vale, contudo, notar que o esforço redistributivo adicional que seria requerido do PBF para que competisse em termos de efetividade com o salário mínimo implicaria em difícil economia política—o que de resto é típico de programas focalizados, cujo apoio político parece depender de se manterem confinados a diminutos orçamentos ou percentuais do PIB. Nesse sentido, a política do salário mínimo se aproxima a uma política de redistribuição de corte universalista—envolvendo boa parte da população e atravessando situações mais heterogêneas socioeconomicamente, em princípio rompendo com a lógica contributiva de nossa política social, por um lado, e, por outro, desviando da tentação assistencialista, de fazer a assistência repousar sobre não direitos. Em consequência, o apoio político é potencialmente mais amplo: trabalhadores urbanos e rurais, aposentados com e sem contribuição à previdência (por exemplo, os recebedores de aposentadorias rurais especiais) e categorias de indivíduos pobres (idosos e deficientes) que tiveram seus direitos constitucionais reconhecidos. Contudo, a defesa política dessa intervenção depende crucialmente de sua visibilidade. Nesse sentido, é possível que o programa menos redistributivo, que tem sido objeto de maior exposição pública, resista melhor a tentativas de retração do que justamente o mais efetivo.
Seja como for, não tanto por conta da efetiva expansão dos serviços públicos sociais (o caso da saúde é peculiar, pois não havia um segmento público de atenção à saúde desenvolvido no Brasil antes disso), a Constituição de 1988 estabeleceu os vetores estruturais de redução da desigualdade no Brasil. Pode-se especular que os impactos teriam sido ainda maiores, e certamente mais duradouros, caso outras de suas orientações gerais, como saúde e educação públicas universais de qualidade, tivessem sido tenazmente perseguidas.
Não obstante, encontra-se na mesma carta constitucional a origem dos limites no que respeita à expansão de oportunidades sociais efetivas: a Constituição não propugnou a tributação progressiva como esteio dos gastos, o que se revelaria essencial para a efetivação dos direitos nominalmente estendidos a todos os brasileiros (a exceção é o vago Imposto sobre Grandes Fortunas, jamais regulamentado). Isso porque para sustentar o viés progressivo do gasto social seria necessário financiá-lo com impostos não regressivos, impostos cujo fato gerador fosse não o consumo, mas a renda e a riqueza, pois de outra forma onerariam justamente os indivíduos e famílias potenciais beneficiários do esforço redistributivo. Ademais, a necessidade de recursos adicionais para os serviços sociais públicos se impunha, para que fossem universais e de fato contemplassem integração social e não os conhecidos dualismos. Na ausência disso, o cenário seria, como foi, o da promessa descumprida de emergência de uma nova classe média—uma classe de famílias que alcançaram rendimentos próximos à mediana da distribuição e que viu boa parte de sua melhora de renda ser drenada para serviços sociais privados, na ausência de serviços públicos adequados.
A noção de que a CF 1988 refletiu um pacto social favorável à expansão dos gastos sociais com financiamento regressivo sugere a carta constitucional como a origem de virtudes e vícios de nosso experimento de progresso social. Evidentemente, a política governamental foi importante fator mediador: as administrações petistas se alavancaram na orientação pró-redistribuição inscrita na Constituição e não se contrapuseram à questão do financiamento regressivo—mérito e demérito delas.
Oportunidades perdidas em serviços e tributação
A insuficiente estrutura de oportunidades sociais no Brasil está amplamente documentada; sua expansão seria crucial para a diminuição das distâncias econômicas e sociais existentes especialmente no trecho entre o primeiro e o nono décimos da distribuição de renda, habitado pelos pobres, os remediados vulneráveis à pobreza e as classes médias. Reconhecidamente, serviços sociais públicos de qualidade afetam não apenas as condições de geração de rendimentos (via qualificação, produtividade, redução de prêmios à educação) como também o próprio mercado de trabalho e as condições de remuneração do trabalho em geral (via emprego público no setor de serviços sociais, considerados “good jobs”, formalizados, com bons rendimentos médios e relativamente baixa desigualdade de rendimentos). Nesse quesito, o avanço brasileiro foi lento, insuficiente, sem estratégia definida, prevalecendo certa cegueira quanto ao potencial desenvolvimentista dos serviços.
Investimentos em saúde continuam subfinanciados, com gastos per capita baixos até mesmo para padrões latino-americanos. A promessa de um sistema unificado de saúde está longe de cumprida pois ainda são os recursos privados das famílias brasileiras a financiar a maior parte dos gastos em saúde no país. Quanto à educação, em comunhão com o notório subfinanciamento que situa o país na retaguarda da região em termos de gastos por estudante, estão os deficientes indicadores de provisão e resultados educacionais. Subatendimento em todos os níveis educacionais, atingindo de modo mais severo a educação infantil, superior e o ensino médio, nessa ordem, escolarização deficiente ainda inferior ao ensino médio incompleto, precária qualidade do sistema educacional, explicitada no pobre desempenho em testes padronizados de estudantes brasileiros egressos do ensino fundamental são os marcadores da precariedade de nosso sistema educacional, o qual não se configurou prioritário na estratégia de crescimento (re)distributivo da década de ouro.
Pode-se especular, em hipótese benigna, que a aposta foi no sentido de que os gastos em serviços se elevariam inercialmente, com o crescimento econômico e as mudanças demográficas. Seja como for, o cálculo estava equivocado. Estimativas calculam as brechas nos gastos em educação e saúde para que os direitos sociais constitucionais fossem de fato contemplados como equivalente a quase o dobro das proporções atuais dos gastos como percentual do PIB (cerca de 8% do PIB).
E, no entanto, a provisão de serviços sociais públicos de qualidade, em acréscimo a influências sobre o bem-estar e realizações pessoais, tem efeitos sociais notáveis, como o potencial de reduzir desigualdades sociais e econômicas. A experiência dos estados de bem-estar contemporâneos que mais investem em serviços é pródiga em evi-dências.46 O efeito sobre desigualdades econômicas normalmente mencionado é o que se traduz em qualificação e produtividade dos trabalhadores e, portanto, em maiores rendimentos médios e menores diferenciais salariais, intra e entre gerações. Contudo, há outra influência importante a merecer atenção.
A expansão da provisão de serviços sociais produz efeitos sobre a qualidade dos empregos—de um modo geral e, especificamente, no setor de serviços, que é a fábrica de empregos do mundo contemporâneo. Quanto mais a estrutura do emprego se apoia naquelas ocupações (no subsetor de serviços sociais), mais equilibrado é o mercado de trabalho: mais formalizado, com maiores rendimentos médios e menores diferenciais salariais. Nos países desenvolvidos, o segmento de serviços sociais absorve algo entre 37% e 44% dos empregos no setor de serviços. É o subsetor isoladamente mais importante. Os maiores pesos encontram-se nos estados do bem-estar nórdicos, onde a provisão é quase que exclusivamente pública. Na América Latina, a despeito da predominância do subsetor distributivo no emprego em serviços, o peso dos serviços sociais chega a 32% na Argentina e 37% no Uruguai. No Brasil, é apenas 25%, e pouco mais da metade é emprego público; adicionalmente, sua participação, que diminuiu ligeiramente entre 2002 e 2014, oferece um ângulo novo da ausente prioridade à expansão de serviços sociais no país durante a década em análise.
O esforço tributário necessário à entrega de direitos sociais, com previsíveis impactos redistributivos, teria que incluir uma reforma tributária que acentuasse a progressividade da arrecadação. O país, nisso também uma exceção quando comparado com países da OCDE e mesmo da região como Chile e México, tem sua carga tributária desproporcionalmente baseada em tributos indiretos (51% em 2013), que oneram os mais pobres (porque gastam toda a sua renda em consumo, ao contrário dos mais ricos). O único imposto progressivo no país é o imposto de renda, mesmo assim a alíquota média é baixa48 e diminui com o aumento da renda no topo da distribuição (a partir do percentil 98).49 A alíquota marginal de 27,5%, que se abate com maior vigor sobre rendimentos relativamente baixos, é inferior até mesmo às praticadas em países “mercadófilos” como os Estados Unidos (39,6%) e o Chile (40%).
A associação com a Constituição de 1988 parece inevitável. Na ausência de diretriz progressiva, já no ano de 1989 as alíquotas marginais despencariam vinte pontos percentuais, de 50% para 25%, sem qualquer drama político. Ainda, em 1995, de forma igualmente desdramatizada, lucros e dividendos distribuídos ficariam isentos de tributação, sob a alegação de eliminar bitributação e elevar os investimentos no país. O Brasil dali resultante seria um dos países com a mais baixa tributação de lucros, frente aos países da OCDE incluindo Chile e México, com 28,3% versus 51% (OCDE), 57,6% (EUA), 40% (Chile) e 42% (México). As principais fontes de arrecadação no país se tornariam em definitivo a renda do trabalho e as transferências do governo.
Considerando-se, de um lado, a extremamente elevada concentração de renda nos altos estratos no país, visível em função da divulgação de tabulações especiais da Receita Federal do Brasil e de análises pioneiras por Medeiros e Souza—concentração que não se contraiu e despontou como uma das mais altas do mundo —, e, de outro lado, a inexistência de tributação progressiva sobre altas rendas, propriedades e riqueza, um manancial de recursos tributários potenciais estaria aberto a exploração. As vantagens são múltiplas; as dificuldades, previsíveis.
Em primeiro lugar, a simples mudança na composição da carga tributária desonerando o consumo e os rendimentos mais baixos já produziria impactos desconcentradores imediatos na distribuição de renda e reduziria a pobreza da renda disponível das famílias, atualmente inflada justamente por conta de impostos sobre o consumo (segundo cálculos de Lustig, Lopez-Calva e Ortiz-Juarez, com base na Pesquisa de Orçamentos Familiares 2009, a pobreza pós-fisco supera a pobreza da renda de mercado no Brasil). Em segundo lugar, recursos adicionais logo encontrariam gastos à altura, como os necessários para a provisão de serviços sociais públicos universais de qualidade. A aspiração de universalização com qualidade contemplada na carta de 1988, de modo a servir não apenas os pobres como a classe média e os mais ricos, implicaria em gastos substanciais da ordem de 8% do PIB, elevando a carga tributária caso outros gastos não sociais não se contraíssem. Junto com a eliminação de renúncias tributárias para gastos privados em educação e saúde, impostos diretos progressivos sobre renda e riqueza seriam essenciais. A ampliação da carga tributária com a participação de impostos progressivos contribuiria ainda para melhorar o perfil de financiamento do Estado brasileiro, reduzindo o apoio em endividamento que é distributivamente regressivo e compromete o crescimento de longo prazo.
Quanto às dificuldades, a principal é de natureza política. Não parece haver razão técnica a justificar a ínfima progressividade da tributação brasileira, que isola o país da comunidade internacional mesmo que se considere a redução de progressividade sofrida pelas economias avançadas ao longo de décadas recentes. A brecha entre o Brasil e o resto do mundo com o qual costuma ser comparado permanece irredutível. O argumento do prejuízo ao investimento foi falseado pela não resposta do investimento ao estímulo tributário a partir de 1995. O argumento da bitributação tampouco resiste ao fato de que países da OCDE tributam tanto lucros distribuídos como retidos, alocando alíquotas de modo a não prejudicar investimentos. Análise recente de declarações do imposto de renda com base no ano de 2013 fornece pista preciosa, ou confirmação contundente de suspeitas antigas, na direção da explicação de ordem política: entre os declarantes no topo da distribuição de rendimentos estão dirigentes partidários e de associações patronais.
E a esperança?
No âmbito mundial, a formação de estados de bem-estar com resultados efetivos requereu a expansão contínua do gasto, em resposta a novos e renovados riscos sociais. Na atualidade, os valores superam 30% do PIB em países desenvolvidos. De fato, inspeção superficial à evolução dos gastos sociais nesses países mostra despesas crescentes—como proporção do PIB, em termos reais e per capita. Essa afirmação é verdadeira seja para países desenvolvidos, seja para emergentes—de fato a maior ampliação observada em anos recentes ocorreu no leste asiático, em particular, na Coreia do Sul.61 Outra observação ordinária é a colaboração entre seguridade social e serviços, ambos militando por justiça social e progresso material. Esse é principalmente o caso nos países onde o gasto social tem os maiores efeitos redistributivos, com forte retorno econômico, como no norte da Europa.
Na contramão, o horizonte brasileiro para os próximos vinte anos, a prevalecer a emenda do teto do gasto real, é de redução do gasto como proporção do produto e conflito entre suas diferentes dimensões, dada a inevitável expansão da demanda que se faz prever pela simples dinâmica demográfica (o envelhecimento da população). Dados os evidentes subfinanciamentos e subcoberturas, em adição ao crescimento inercial indexado à demografia, qualquer cenário é assombroso: trocar os gastos em educação pelos de saúde ou vice-versa; comprimir os gastos com previdência para atender os serviços ou vice-versa.
A julgar pela hiperatividade reformista dos tempos que correm, a aposta atual é na residualização da política social: serviços sociais ainda mais deteriorados seriam buscados apenas pelos pobres ou empobrecidos, aposentadorias desvalorizadas sofreriam processo de assistencialização, se dirigindo apenas aos mesmos grupos, enquanto aqueles grupos com rendimentos maiores buscariam soluções privadas—o que deverá enfraquecer ainda mais a defesa política da previdência pública. Amparados na copiosa literatura sobre estados sociais, já sabemos que tais experimentos desaguam em segregação do bem-estar e rédea solta para as desigualdades como concentração no topo—basta olhar o que acontece, por exemplo, nos Estados Unidos.
É possível antecipar, no tipo de política redistributiva que se fará via previdência social, a fragilização da classe c e o esmagamento da classe média: a desigualdade não cederá por elevação do piso e compressão do teto; a redução que houver será por uma redistribuição, sem limitações às rendas altas, da classe média em direção aos mais pobres ou empobrecidos. O destino dos serviços em boa parte se pode prever a partir da dinâmica dos rendimentos: empobrecidos dilatarão a demanda dos já insuficientes serviços; talvez soluções de mercado a baixos preço e qualidade sejam a eles oferecidas, alimentando novos lucros e privações. Em suma, caminharemos na direção oposta à visão social-democrata que inspirou a Constituição de 1988.
O enredo da política social é ainda o velho enredo, focalização versus universalização. Décadas de sistemas de bem-estar consolidados alhures, onde serviços universais conviveram com impostos altos e no geral progressivos e com progresso material pujante, não sensibilizaram os especialistas de plantão, prontos a estender aos governantes de ocasião o cardápio do estado mínimo. Obscurantismo ou ideologia? Seja o que for, representará a vitória da visão de política social como política para pobres e a consequente derrota da visão de integração social que inspirou o estado social moderno.
Observações finais
Não há como negar a relevância do que ocorreu no Brasil, seja na perspectiva histórica autóctone, seja no contexto da história da redistribuição no mundo, seja ainda na cena global contemporânea. A pobreza de renda e a desigualdade na distribuição de renda apresentaram quedas históricas, substanciais também no confronto com a experiência internacional de desenvolvidos e emergentes, no que sinalizaram redução de distâncias. Esses me parecem marcadores significativos para dobrar a resistência dos que insistem sem maior objetividade na irrelevância do experimento.
Esses feitos foram conduzidos em parte por políticas sociais, em parte por crescimento, mas mesmo este último sofreu contágio de políticas redistributivas que o metamorfosearam em crescimento (re) distributivo. Dentre as políticas sociais, a política de valorização do salário mínimo se destacou, notadamente por seu impacto sobre a redução da desigualdade. Ao afetar rendimentos para além do mercado de trabalho, foi uma política de redistribuição calcada em direitos sociais dos cidadãos (não apenas dos trabalhadores), a qual se viu complementada, com todas as limitações que se possam apontar, por importantes programas de transferência de renda focalizados em famílias extremamente pobres, de caráter emergencial, como o PBF. Políticas de regulação do mercado de trabalho operaram no sentido de redução de sua segmentação e, portanto, na extensão de direitos do trabalho e à proteção social a diferentes condições de ocupação. De novo, não se tratou, portanto, de um conjunto de intervenções residuais, obedientes aos preceitos neoliberais de precedência do mercado e de redes de segurança social. A formalização no mercado de trabalho brasileiro, possivelmente a mais importante mudança sofrida em sua conformação nas décadas recentes, foi transversal, setorial e categórica, foi promovida por intervenção pública, foi substancial na história do país e na comparação regional e ocorreu como movimento inverso às dinâmicas contemporâneas nos mercados de trabalho dos países desenvolvidos e do grupo Brics. O crescimento brasileiro com empregos formais não foi prejudicado pela expansão do emprego em serviços (a despeito da má reputação), cuja qualidade também melhorou.
O caso da década dourada brasileira figurará na literatura internacional como (mais uma) ilustração da inversão de dogmas sagrados de teorias ortodoxas do crescimento e da economia do desenvolvimento pós-consenso de Washington: crescimento compatível com redistribuição, e mesmo crescimento redistributivo; valorização do salário mínimo (e regulação do mercado de trabalho) compatível com crescimento do emprego, em geral, e do emprego formal, em particular; programas de renda focalizados que não engolem o estado social; políticas sociais quase universais com efeitos redistributivos mais importantes do que políticas focalizadas.
Contudo, há que se mencionar as lacunas: mudanças na renda não provocaram alterações na estrutura social, pelo menos não as que se esperavam, como a constituição de uma robusta classe média no país. Os ganhos de renda das famílias pobres e remediadas não foram suficientes para que acedessem a recursos discricionários e à segurança econômica que caracterizam do ponto de vista econômico a classe média. Faltaram outras oportunidades, além das oferecidas pelo mercado de trabalho regulado: serviços sociais públicos de qualidade, acesso à riqueza. De um modo geral, os serviços sociais foram negligenciados. Eram os direitos sociais da Constituição, eram as fontes de mudanças profundas na estrutura social e de ganhos econômicos, eram a possibilidade de mercados de trabalho mais equilibrados e com maiores perspectivas de realização pessoal, eram ainda fontes potenciais de “mudança estrutural dentro da mudança estrutural” (dentro dos serviços em direção aos serviços sociais) e, portanto, de um desenvolvimento econômico socialmente mais justo.
E assim como a Constituição de 1988 foi a origem da ordem jurídica que garantia direitos sociais de cidadania, foi também onde se originou uma impossibilidade. Os elevados custos de uma estrutura de oportunidades efetivamente universal exigiriam equação financeira que incluísse arrecadação progressiva. E antes que se possa alegar que os estados sociais mundo afora foram se movendo em direção a tributações menos progressivas, o que é verdadeiro, é bom lembrar que “menos” não é o mesmo que “nada”: nossa distância em relação à progressividade desses (agora menos progressivos) estados sociais segue espantosa. Essa opção aparentemente esteve fora do pacto social e político que sustentou a Assembleia Constituinte de 1987. Esse mesmo pacto esteve subjacente ao experimento de redistribuição recente.
Curiosamente, isso não pareceu representar um problema do ponto de vista do sistema de crenças subjacente aos protagonistas políticos do experimento redistributivo, supondo que fosse um sistema coerente: este alinhou a aspiração de elevar o padrão de consumo da população pobre e remediada em direção ao acesso a bens-símbolo da classe média, sonho operário legítimo, a elementos “economicistas” da equipe econômica, como o vício de reduzir desenvolvimento a crescimento do PIB, emprego e renda. Contudo, não foi um sonho social--democrata; nele não caberia como não coube a prioridade a serviços sociais públicos universais, o duplo societário da social-democracia. A sociedade materializada no consumo público conjunto de bens e serviços sociais.
De todo modo, o paradoxo na Constituição de 1988 aqui detectado foi claramente percebido pelos reformistas atuais: a Constituição não cabe no orçamento. O paradoxo se desfaz com a retração em marcha dos direitos sociais constitucionais.
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