Líbia: antes e depois de Gaddafi
- Lucas Carvalho
- 23 de jan. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 4 de fev. de 2020
Nove anos após a intervenção militar liderada pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) para derrubar o coronel Muammar al-Gaddafi, a Líbia continua presa em uma espiral de violência envolvendo grupos armados, sectários, étnicos e interferência externa que levaram o país ao caos absoluto.

Em 20 de outubro de 2011, em meio a protestos apoiados pelos governos dos Estados Unidos e da União Europeia - um levante armado que mergulhou o país em guerra civil -, o líder líbio foi capturado e brutalmente assassinado pelos rebeldes. Localizada ao norte da África e sendo um dos países mais prósperos do continente africano graças aos seus vastos campos de petróleo, após a queda de Gaddafi, a Líbia foi dividida entre governos rivais no leste e oeste e entre vários grupos armados que competiam por cotas de poder, pelo controle do país e por sua riqueza.
Gaddafi governou por 42 anos (de 1969 a 2011), levando a Líbia a um avanço significativo em questões sociais, políticas e econômicas, que foram reconhecidas e admiradas por muitas nações africanas e árabes na época. Apesar de seu governo controverso, Gaddafi representou uma figura importante nas lutas anti-imperialistas, por sua posição principalmente contra os EUA e contra as políticas realizadas a partir de Washington no Oriente Médio. É por esse motivo que a sua vida e a sua morte se tornaram eventos cruciais na história da Líbia e essenciais para entender a situação atual.
Líbia antes de Gaddafi
Após a Segunda Guerra Mundial, a Líbia foi cedida à França e ao Reino Unido, e ambos os países a vincularam administrativamente às suas colônias na Argélia e na Tunísia. No entanto, o Reino Unido favoreceu o surgimento de uma monarquia controlada pela Arábia Saudita e endossada pela ONU, a dinastia Senussi, que governava o país desde sua "independência" em 1951, sob a monarquia do rei Idris I, que manteve a Líbia em total obscurantismo enquanto promoveu os interesses econômicos e militares britânicos.
Quando as reservas de petróleo foram descobertas em 1959, a exploração da riqueza não se transformou em benefícios para o povo. Segundo o analista político Thierry Meyssan, durante a monarquia, o país estava atolado em atrasos na educação, na saúde, na moradia, na previdência social, entre outros setores. As baixas taxas de alfabetização eram chocantes: segundo Meyssan, dos quatro milhões de habitantes do país, apenas 250 mil sabiam ler e escrever.
E foi em 1969 que a dinastia Senussi foi derrubada por um grupo de oficiais liderados pelo coronel Muammar al-Gaddafi, que proclamou a verdadeira independência da Líbia e removeu as forças estrangeiras dominantes do país (Gaddafi exige a retirada e retira as bases militares americanas e inglesas, retira todos os americanos vindos através da aliança entre Idris I e EUA, fecha danceterias, bordéis e bares instalados pelos americanos, proíbe a exportação de petróleo para os EUA). Uma das políticas imediatas de Gaddafi era compartilhar os benefícios e as riquezas do país para todos os líbios.
Líbia com Gaddafi
Uma vez que Gaddafi assume o poder, o petróleo torna-se o principal recurso nas mãos do líder da recém-proclamada República Árabe da Líbia. O triunfo da revolução de 1969 marcou uma mudança de paradigma, levando o novo governo a usar sua renda do petróleo para impulsionar medidas redistributivas entre a população, gerando um novo modelo de desenvolvimento econômico e social para o país. Segundo analistas, entre as medidas de "soberania econômica" que impulsionaram as políticas de Gaddafi estavam a nacionalização de várias companhias de petróleo ocidentais como a British Petroleum (BP) e a criação da National Oil Corporation (NOC).
Ao longo do mandato de Gaddafi, foram lançados ambiciosos programas sociais nas áreas de educação, saúde, habitação, obras públicas e subsídios à eletricidade e alimentos básicos. Essas políticas levaram a uma melhoria substancial nas condições de vida dos líbios, de um dos países mais pobres da África em 1969 a líder do continente em seu Índice de Desenvolvimento Humano em 2011. Em 2010, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) considerava a Líbia um país de alto desenvolvimento no Oriente Médio e no norte da África. Esse status traduzido significava uma taxa de alfabetização de 88,4%, uma expectativa de vida de 74,5 anos, avanços na igualdade de gênero, entre outros indicadores positivos.
A nível nacional, Gaddafi conseguiu lidar com dois dilemas centrais característicos da sociedade líbia: por um lado, a dificuldade de exercer controle sobre as tribos e, por outro, a fragmentação da sociedade em diversos grupos e tribos regionais e, às vezes, opostos. Estima-se que existam cerca de 140 tribos no território líbio, cada uma com diferentes tradições e origens. Gaddafi tinha a capacidade de unir esses territórios com pouca conexão um com o outro. A nível internacional, o pan-arabismo deve ser destacado, com o confronto aberto aos Estados Unidos devido à oposição que Gaddafi exerceu a respeito da influência que este país tinha na região, estreitando laços com outros países árabes para realizar políticas comuns de rejeição às políticas de Washington no Oriente Médio e na África.
O líder líbio trabalhou para fortalecer os laços com países vizinhos como Egito, Marrocos, Síria, Tunísia, Chade, entre outros, além de manter boas relações com países como Rússia e China. Gaddafi também se conectou com países latino-americanos como Venezuela e Cuba, o que o levou a cultivar uma extensa rede de contatos e uma influência desconfortável para a Europa e os EUA. Quando foi morto, a Líbia tinha o maior PIB per capita e a maior expectativa de vida no continente. Menos pessoas viviam abaixo da linha de pobreza do que na Holanda.
A queda de Gaddafi
Os protestos de cidadãos que começaram na Tunísia em dezembro de 2010 (a chamada "Primavera Árabe") chegaram um mês depois na vizinha Líbia, embora de maneira diferente, pois as manifestações populares e massivas que se caracterizavam na Tunísia e no Egito não foram replicadas na Líbia. Em contraste, em Benghazi, onde o movimento anti-Gaddafi se concentrou, os grupos islâmicos predominaram.
Alguns analistas políticos concordam que na Líbia nunca houve um movimento de massas em escala nacional como nos outros países, nem houve apoio popular para derrubar o governo de Gaddafi. No entanto, os levantes em Benghazi foram suficientes para que o Conselho de Segurança da ONU e a OTAN intervissem em nome da Responsabilidade de Proteger (Resolução 1973) e lançassem uma campanha de bombardeio entre março e outubro de 2011, que teve um impacto decisivo no assassinato de Gaddafi. Segundo Meyssan, a interferência da OTAN nos assuntos internos da Líbia e a derrubada de Gaddafi não foram resultado de um conflito entre líbios, mas de uma estratégia de desestabilização regional a longo prazo para toda a região do Oriente Médio.
Nove anos após a morte de Gaddafi, os habitantes da capital do país, devastada pelo caos, passaram a sentir falta do líder de longa data, à medida que as frustrações da vida cotidiana aumentam. "Eu odeio dizer isso, mas nossa vida foi melhor sob o regime anterior", disse Fayza al-Naas, farmacêutico de 42 anos, à Agence France-Presse em 2015. Este é um sentimento que tem sido compartilhado por muitos líbios, incluindo aqueles que se opuseram a Gaddafi em algum momento.
A Líbia econômica e socialmente estável que existiu sob Gaddafi versus um país fragmentado, sem governo, devastado por ataques, bombardeios e confrontos contínuos, é o resultado da invasão da OTAN em 2011. Uma conclusão que muitos se arrependem de apoiar quase uma década depois.
Tradução e adaptação por Lucas Carvalho
De: TeleSUR
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