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Um TeaParty tropical: a ascensão de uma “nova direita” no Brasil



Um TeaParty Tropical?


De fato, se há um fenômeno político com o qual esta nova direita militante compartilha não somente um ar de família, mas nexos muito reais, é o TeaParty nos EUA. O paralelo é evidente. A semelhança é gritante.


Como o TeaParty estadunidense, esta direita que mobiliza na rua e multiplica os atos públicos é formata de uma multiplicidade de organizações e grupúsculos mais ou menos ligados entre si formando rede. Como ele, ela é difusa, presente ao mesmo tempo no mondo da mídia, nas administrações, nos partidos políti­cos e no mundo da empresa. Como ele, ela se constituiu em resposta à chegada ao poder de um governo real ou supostamente progressista (Barack Obama nos Estados Unidos, Lula no Brasil) e se apresenta como o último baluarte da democracia frente ao intervencionismo indistintamente taxados de comunistas, fascistas, neonazistas (sic).


Como ele, ela se pretende a guardiã das tradições fundadoras da nação e uma resposta ao declínio dos valores e à erosão dos costumes. Como ele, ela se apresenta como defensora das classes médias, mais ainda dos pequeninos diante da tirania do imposto, apresenta-se como a garantia das liberdades políticas e econômicas face a um Estado e políticos que ela julga invasivos e opressivos e combate qualquer ideia de redistribuição e de desconcentração de renda e se joga nas teses conspiracionistas e nas diatribes anti-solidariedade. Como ele, enfim, certos de seus componentes são próximos, ou mesmo financiados diretamente, por empresas e poderosas fundações privadas (Guerlain, 2012, 2015; Moreira Leite 2014; Campos Mello, 2014; Amaral, 2015).


Observe-se que eles próprios se proclamam próximos deste TeaParty norte americano, ou conclamam à formação de um movimento similar. Alguns chegaram mesmo a propor de modo antecipado um programa político comum a este TeaParty brasileiro, a exemplo do diretor do Instituto Liberal, o publicitário Alexandre Borges (2014), em um artigo de tom premonitório, “Que venha o Te­aParty brasileiro”. No menu? Redução do tamanho do Estado, drásticas reduções do imposto de renda, fim dos fluxos migratórios, fim da intrusão do Estado na vida do cidadão, congelamento das despesas públicas, promoção dos valores tradicio­nais, em suma, simples “copiar-colar do programa defendido pelo movimento estadunidense, como observou, aliás, também o semanário liberal The Economist (2015).


Resta que a versão brasileira deste TeaParty é mais radical em suas reivindi­cações e bem mais elitista em sua composição. Se ela atua por conta de interes­ses particulares, a exemplo de seu homólogo estadunidense, como indicam os vínculos de seus principais atores com o mundo dos negócios e alguns grandes grupos e fundações privadas, em troca, seus membros pertencem a meios muito menos populares em um país de desigualdades bem mais abissais que nos Estados Unidos. “Agindo em um país muito mais pobre e desigual do que o americano” – escreve assim o jornalista político Paulo Moreira Leite:


nosso Tea Party faz uma tradução adaptada e empobrecida da mesma retórica. Procura se esconder atrás de causas universais para esconder que se move em nome de interesses bem particulares. Nessa versão tropicalizada, alega que tudo o que sobrevive às voltas do Estado não é embrião de comunismo, mas fruto de um roubo. (...). Seus integrantes falam como se fossem anarquistas de direita, mas, num tributo (sem ofensa) às mazelas nacionais, seus verdadeiros líderes e inspiradores tiveram vários flertes e até muito mais do que isso nos tempos da ditadura militar (Moreira Leite, 2014).

Ora, é precisamente esta filiação com as antigas elites que relativiza a no­vidade desta direita no Brasil. Se novidade existe, esta se resume na utilização de repertório de ação há muito tempo associado à esquerda e ao desvio seus símbolos (Solnick, 2012). Engalanada de novas roupas, ela é apenas a versão mais recente do velho acervo elitista, reacionário, anticomunista e antissocial da sociedade brasileira, convertido em ideologia antipetista. Apenas dissimula velhas reivindicações atrás de uma linguagem nova destinada a “seduzir e controlar o público de esquerda” (Amaral, 2015). No Brasil, explica Lincoln Secco,


o recrudescimento da ideologia antipetista e a degenerescência das jornadas de junho deram a uma direita militante o ar da novidade. Mas assim como o antico­munismo no passado, o antipetismo não é um fenômeno contrário a um partido. O antipetismo já existia nos anos 1980 e as suas motivações profundas são as mesmas: o medo que os pobres chutem a escada ou que subam alguns degraus e se aproxime de você (Secco, 2014).

Medo das elites, claro, mas também medo que emana das classes médias, velhas e novas, fragilizadas pela atual recessão econômica, decepcionadas em suas aspirações e ameaçadas pela ascensão social de certos grupos. Não é por acaso se a esmagadora maioria dos participantes das mobilizações anti-Dilma e pró-impeachment de São Paulo são das camadas intermediárias da sociedade brasileira. O perfil social médio do protestador pode ser esboçado como: jovem (entre 20 e 40), diplomado (no mínimo com diploma de curso secundário) e declarante de renda mensal correspondente a pelo menos cinco salários mínimos ou mais1. Entre estes manifestantes e os que suaram a camisa na segunda fase das mobilizações de junho de 2013, a continuidade social é inegável2. Fossem quais fossem os slogans, estes dois momentos de protestos seriam reveladores de uma mesma “revolta de classe”, segundo Lincoln Secco (2015).


Tanto ao nível do perfil de seus componentes como em suas razões de ação, o movimento anti-Dilma ou pró-impeachment, compartilha, na realidade, bem mais traços comuns com as “Marchas pela Família” que precederam o golpe de Estado de 1964 do que com o movimento Occupy Wall Street ou o da praça Gezi, na Turquia. Analisando as motivações que conduziram a elite a sustentar os golpes de Estado anticomunistas nos anos 1960-1970, Alain Rouquié escreve brilhantemente em seu notável ensaio sobre a democracia na América Latina: “Os partidários do poder aos mais capazes denunciam os do poder aos mais numerosos. A elite só reconhece o princípio da maioria quando ele responde a seus interesses” (Rouquié, 2010). A afirmação do autor permanece pertinente. No fundo, é o mesmo ódio do popular, a mesma rejeição das políticas sociais que levaram seus simpatizantes à rua, é o mesmo desconforto frente a um con­texto econômico ameaçador e uma profunda crise política que levou dezenas de milhares de pessoas a aderirem às palavras de ordem desta direita que metralha o governo petista e, hoje, o ex-presidente Lula.


Antipetismo, racismo social, xenofobia e violência verbal


De fato, o antipetismo constitui o principal cimento desta nova direita, seu mais sólido traço de união, seu princípio unificador, mas também seu principal negócio. Todos os seus componentes partilham uma comum aversão vis-à-vis a esquerda em geral, o PT e o governo de Dilma Rousseff em particular. Sem qualquer exceção, o Partido dos Trabalhadores e seus representantes no governo são depositários de todos os vícios e tornados responsáveis por todos os males da sociedade brasileira; criminalidade galopante, corrupção, má gestão, dissolução dos costumes e dos valores, crise etc. Abundantemente amplificado por uma imprensa carnívora, ávida de sangue e de lágrimas, cada drama, cada caso, cada escândalo é colocado na conta seja do PT, seja do governo, seja de políticos, seja ainda do ambiente que eles teriam contribuído para instaurar.


Em tal clima, é fácil compreender que as mobilizações de junho de 2013 tenham sido uma verdadeira oportunidade para esta nova direita. Transformando­-se em uma carga violenta contra os poderes públicos e o governo federal, este protesto massivo lhe deu a oportunidade não apenas de existir e de se fazer ouvir, mas também de estender sua influência e sua audiência bem além dos círculos restritos nos quais ela permanecia confinada até então. Aproveitando a oportu­nidade aberta tanto pela vaga de protestos de junho de 2013 e pelas revelações oriundas da operação Lava Jato, ela finalmente encontrou um eco real no interior das classes médias urbanas, seduzidas por seu discurso antipetista, anticorrupção, autoritário e securitário, e assustadas pela entrada do Brasil em uma nova fase de recessão econômica. Testemunha disso é, entre outras, o sucesso do site de informação internauta Mídia sem Máscara, fundado pelo jornalista de extrema-direita Olavo de Carvalho, a performance eleitoral da família Bolsonaro e do pastor fundamentalista Marco Feliciano, figuras de proa desta movimentação ultrarradical, e sobretudo a amplitude adquirida pelas manifestações antigovernamentais e pró-impeachment convocadas pelos principais âncoras operários do movimento.


Além de sua responsabilidade pela degenerescência moral da nação, o PT é acusado de querer instaurar uma ditadura socialista no país com o apoio de seus aliados nacionais (movimentos sociais, sindicatos, Ordem dos Advogados do Brasil, professores de ensino médio e universitário, militantes ecologistas, feministas ou organizações de defesa dos direitos humanos e de minorias etc.) e a ajuda dos cubanos, dos venezuelanos e de outros partidos de esquerda do continente. Assim, pouco após as eleições de outubro de 2014, diversas organi­zações desta nova direita publicaram um manifesto “Pela Democracia”, no qual declaravam em uma linguagem paranoica, digna dos piores momentos da guerra fria e recheado de referências gramscianas3:


Saímos às ruas para defender a democracia brasileira, seriamente ameaçada pelo projeto de poder totalitário do PT, instrumentalizado pelo Foro de São Paulo (organização terrorista que reúne partidos de esquerda e grupos criminosos do continente latino-americano) para implantar o bolivarianismo no Brasil e demais países da América Latina, sob o comando dos irmãos Castro.
Nosso movimento é pela democracia, pela soberania nacional, pela verdade, pela dignidade e pela liberdade. Sabemos que o PT está empenhado em extinguir as liberdades individuais, amparado no pior populismo e clientelismo, com as já evi­dentes consequências econômicas desastrosas, a generalizada degradação moral e a insegurança institucional, com o Estado e a sociedade civil aparelhados para uma hegemonia ideológica que coloca em risco as liberdades individuais (VVAA, 2014).

E os signatários deste manifesto, após terem destilado uma torrente de ódio e de acusações mentirosas contra o governo, exigiam a destituição de Dilma Rousseff em uma retórica “golpista” pouco velada, mesmo que se defendessem.


Se ela banaliza “retórica golpista”, esta diatribe antipetista também tende a excluir do espaço político categorias sociais inteiras, reativando os velhos precon­ceitos sociais e raciais. A vitória apertada de Dilma Rousseff sobre o candidato Aécio Neves deu lugar, por exemplo, a uma violenta campanha, ampliada pelos principais meios de comunicação (Veja, TVs Record e Globo etc.) contra os eleitores pobres do Nordeste do país, acusados de ter feito a balança pender em favor da candidata presidente petista. Um voto fortemente clientelista, caduco e despro­positado para esta nova direita. Pois esta população “indolente”, “mal-educada”, “ignorante” e “assistida” teria sido mobilizada, ou mesmo instrumentalizada, às custas de vantagens e de programas sociais com o único objetivo de servir aos interesses políticos hegemônicos do PT e da esquerda em geral às expensas das classes médias – brancas, é claro – das grandes cidades dos sul e sudeste do país, pulmão econômico da nação, como lembrava um jornalista do Mídia sem Máscara: “A grande verdade de 2014” é esta: “não são os pobres que precisam do PT, mas é o PT que precisa dos pobres em estado de pobreza. Para quem não se deu conta, essa é a nova relação de causa e efeito da miséria no Brasil” (Puggina, 2014).


Esta captação parece tanto mais escandalosa nesta nova direita que ela se faria em detrimento de outros grupos obrigados a por a mão no bolso para financiar políticas sociais instrumentais. Afirmava com sapiência o jovem líder do MBL: “A justiça social é outro nome para caridade com dinheiro alheio, ou gozar com o pau dos outros” (Antunes, 2015). Nem o ensino público, qualificado de “fábrica de idiotas”, é perdoado por esta direita. Além dos recentes casos de corrupção que implicam numerosos parlamentares, este “sequestro” dos “con­tribuintes” por uma população cativa justifica, portanto, para uma grande parte desta direita, o impeachment de Dilma Rousseff, a intervenção do exercito ou ainda as declarações autonomistas do estado de São Paulo.


É claro que estes nordestinos pobres, que teriam roubado a vitória às classes médias do Sul, não são os únicos bodes expiatórios deste TeaParty. Os ataques de alguns de seus membros também visam o conjunto das categorias sociais pobres, beneficiárias dos programas sociais e de políticas de cotas (indígenas e afro-brasileiras), principalmente os “desviantes”, LGBT, ateus, feministas, assim como o conjunto dos militantes de esquerda, do qual é afirmado com sapiência pelos mais virulentos porta-vozes desta direita que atribui a todos eles as ten­dências de “psicopatas” ou de “histéricas” (Carvalho, 2014).


Na boca de alguns políticos, o propósito se faz ainda mais intolerante, a linguagem mais violenta. O campeão de todas as categorias deste palavrório descontrolado é, sem qualquer dúvida, o deputado federal Jair Bolsonaro. Frente às acusações de violações em grande escala dos direitos humanos pelos mili­tares durante a ditadura, feitas pela deputada petista e ex-ministra dos direitos humanos de Dilma Rousseff, Maria do Rosário, ele não hesitou em lhe dizer: “Eu não te violarei. Você não merece”, provocando indignação no plenário. A um deputado do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que tinha proposto a abertura de uma enquete contra Bolsonaro devido a situações parecidas, este replicou serenamente que só responderia “em papel higiênico”, pois o PSOL “é um partido de pirocas e viados” (PSOL, 2016; Vinogradoff, 2014).


Acusado de incitação ao ódio, à violência e ao estupro, o patriarca da família Bolsonaro era, obviamente, um estreante. À filha do cantor negro Gilberto Gil, que o interrogava em um programa de televisão, sobre a eventualidade de uma relação entre seu filho e uma mulata, ele respondeu: “Não vou falar de promis­cuidade contigo nem com ninguém. Não existe risco disso acontecer, pois meus filhos foram bem criados e não cresceram no tipo de ambiente que foi o teu!” Racismo não dissimulado, mas também homofobia completamente assumida. Por diversas vezes, havia declarado que preferiria ver seu filho morto do que homossexual e que jamais moraria ao lado de um casal de gays, pois “[estas pessoas] faziam baixar o preço do imóvel” (Tonetto, 2014; Vinogradoff, 2014).

Retratados como “malcheirosos e maleducados”, os indígenas também são alvos do sarcasmo xenófobo do muito popular deputado da extrema direita, sempre empertigado. Assim, referindo-se aos representantes indígenas que vieram de­fender a delimitação de seu território, declarou:


É um índio que está a soldo aqui em Brasília, veio de avião, vai agora comer uma costelinha de porco, tomar um chope, provavelmente um uísque, e quem sabe telefonar para alguém para a sua noite ser mais agradável. Esse é o índio que vem falar aqui de reserva indígena (Sena Filho, 2011).

Se o propósito choca, não surpreende vindo de quem considera os direitos humanos como “esterco de vagabundagem” e a tortura como um meio legítimo de investigação (Carneiro, 2000).


Apesar do fogo nutrido de críticas e de reações indignadas, o discurso violento de Jair Bolsonaro e seus frequentes desvios de linguagem e de condu­ta não impediram a simpatia de que desfruta no Rio de Janeiro. Longe disso! Surfando na onda de contestação anti-PT, antigovernamental e securitário, o líder da extrema direita brasileira foi um dos deputados mais bem eleitos para o Congresso brasileiro nas últimas eleições de outubro de 2014. Com 467.572 votos, ou seja, o quarto melhor colocado e um resultado quatro vezes maior do que nas eleições de 2010, ele se situa pouco à frente de seu fiel aliado, o pastor neopentencostalista homofóbico Marco Feliciano, que tinha declarado que o assassinato de John Lennon foi um castigo divino (Faria, 2013). Beneficiando-se da popularidade de seu pai, os três filhos de Bolsonaro também foram conforta­velmente eleitos para diversas assembleias (Oualalou, 2014). O caçula, Eduardo, que atua ao lado de seu pai no Congresso – mas no partido de Feliciano se fez notar, em uma manifestação anti-Dilma, com um revolver nitidamente visível na cintura (Martin, 2014).


Mas este discurso abertamente xenófobo é ocultado ou temperado por outros discursos voltados para cativar mais o público urbano jovem e educado, mesmo aquele de esquerda, para convertê-lo à boa palavra liberal. Como o expli­cava aos jovens ativistas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, reunidos por ocasião do Fórum das Liberdades – grande missa neoliberal financiada por diversas empresas como Ipiranga, RBS, Souza Cruz e PWC – uma das figuras de proa desta nova direita na Guatemala, o militante devia fazer prova de pedagogia para convencer seus adversários, para seduzir a esquerda. E acrescentava: “Um esquerdista intelectualmente honesto tem de reconhecer que a única saída é o emprego, e um direitista do século 21, que já se modernizou, tem de reconhecer que a sexualidade, a moral, as drogas são um problema de cada um; ele não é a autoridade moral do universo” (Amaral, 2015).


Polarização assimétrica


Desde as eleições de outubro de 2014, o Brasil é cada vez mais polarizado e a ação do governo cada vez mais entravada, com um Congresso mais fragmen­tado e reacionário do que nunca, no qual os lobbies parlamentares (“bancadas”) conservadores têm reforçado sua presença: bancada evangélica, bancada rura­lista que agrupando os grandes proprietários rurais e/ou os deputados que lhe são favoráveis, e bancada da bala (literalmente) favorável à livre venda de armas de fogo. Já atormentado por uma grave crise política, o governo deve coabitar com um parlamento federal que sem dúvida, há cinquenta anos, jamais foi tão marcado à direita, exceto, é claro, o longo período da ditadura militar (Oualalou, 2014). Cabe dizer, nestas condições, que qualquer reforma política, reivindicada por numerosos manifestantes durante as Jornadas de Junho e prometidas por Dilma Rousseff, é morta e enterrada. São enterrados também, ou seriamente postos em questão, os projetos mais progressistas do governo. Remanejado às custas de seus componentes mais inseridos à esquerda, o próprio governo deu uma séria guinada à direita.


Esta é, sem dúvida, uma das lições a tirar das mobilizações de junho de 2013, mas também o principal paradoxo que estas produziram. O efeito perverso que os seus principais instigadores, em particular os membros do Movimento Passe Livre, não esperavam, a despeito de alguns raros cuidados (Sader, 2013). Como observam diversos comentadores da vida política brasileira, ao se transformar pouco a pouco em um assalto contra o governo e os partidos no poder, estas mobilizações que, no início, se pretendiam progressistas, abriram uma espécie de caixa de Pandora, fechada desde a chegada de Lula à presidência, e liberaram as forças mais atávicas e mais reacionárias do país. Massivamente mobilizados, os protestatários criaram uma perigosa brecha no consenso político instaurado pela esquerda brasileira ao preço de importantes renúncias, brecha na qual estas forças não tardaram a penetrar. Ao atenuarem a imagem do PT e enfraquecerem o governo, estes protestos fizeram, de certa maneira, o jogo – involuntário, é verdade – desta direita descomplexada que até então permanecia isolada, politi­camente inexistente, pelo menos de forma organizada, e praticamente inaudível, como se alarmava, ainda em 2011, o semanário conservador e popular Veja em “O incrível caso de um país sem direita” (Castro, 2011).


Incapazes até aqui de encontrar uma expressão comum e forte, em um campo político dominado pela bipolarização PT-PSDB, os componentes mais radicais desta direita tomaram consciência bem rapidamente do proveito que poderiam tirar dessas mobilizações. Dela se aproveitaram os principais protagonistas desta nova direita para se reaproximarem, se reorganizarem, se unirem a despeito de suas divergências, ir às ruas de mãos dadas e recrutar muito amplamente, explorando a lassitude das classes médias vis-à-vis a corrupção, as demasiadas disfunções dos serviços públicos, as taxas impostas, a criminalidade endêmica e jogos poli­tiqueiros. E hoje, como o TeaParty estadunidense, esta nova direita ultrarradical é capaz de mobilizar nas ruas várias dezenas de milhares de pessoas, segundo estimativas sobre as manifestações contra Dilma Rousseff, de 15 de março de 2015. Jamais se viu no Brasil um movimento reacionário desde as uniões dos grandes proprietários de terra ligados à UDR (União Democrática Ruralista) antes da votação da Constituição de 1988 (Payne, 2000; Hailer, 2014). E, como o TeaParty nos EUA, enfim, esta nova direita militante tende a privilegiar uma estratégia de oposição assimétrica no debate democrático. Como explica Paulo Arantes:


A direita norte-americana não está mais interessada em constituir maiorias de governo. Está interessada em impedir que aconteçam governos. Não quer cons­tituir políticas no Legislativo e ignora o voto do eleitor médio. Ela não precisa de voto porque está sendo financiada diretamente pelas grandes corporações (Lucena, 2014).

Tomadas de posição radicais da esquerda no poder não podem, de seu lado, se permitir precisamente porque ela deve “governar, constituir maiorias, negociar e transformar tudo em um mingau”. E acrescenta: “Nos EUA, os democratas e os ‘liberais’ [liberais no sentido anglo-saxão] se caracterizam por uma certa moderação – como a esquerda oficial no Brasil, que é moderada. O outro lado não é moderado. Por isso a polarização assimétrica” (Lucena, 2014).


As palavras liberada e descomplexada são características da ausência de mo­deração desta direita. Em suas intervenções políticas e seus atos públicos, trata-se antes de tudo de atacar, ferir, desacreditar, deslegitimar, ofender, discriminar e de excluir. Todos os seus projetos, todas as suas proposições se inscrevem delibera­damente fora ou à margem do “politicamente aceitável” no plano da ética, um fenômeno que, diga-se de passagem, remete ao problema mais geral – observado igualmente em outros lugares – de fluidificação das normas e dos limiares de tolerância democrática inseridos no direito internacional e na legislação nacional. Disso é testemunha especialmente a banalização da retórica “golpista” por estes novos protestadores hoje capazes de mobilizar em massa (Souza, 2014). Torna­do mestre na arte de cultivar os preconceitos, o rumor e a calúnia, tomando o “povo” como testemunha nos processos públicos que ela abre constantemente contra seus adversários, ignorando toda forma de compromisso democrático, não manobra necessariamente pelo poder, mas procura sobretudo entravar sua ação.


Esta direita radical, até aqui, permanece minoritária politicamente tendo somente alguns representantes no Congresso. Mas pode, daqui em diante, con­tar com o apoio pontual e negociado de certos partidos e formações, de outros deputados, adotando as causas de uns e de outros, em um parlamento cada vez mais fragmentado, dominado por grupos de pressão conservadores determina­dos a colocar areia nas engrenagens do governo. Como demonstraram em suas mobilizações em favor do impeachment, ela não se priva, portanto, de mobilizar estes aliados de circunstância para atacar o governo e não se privará, num futuro próximo, de sabotar qualquer projeto que não se enquadre em sua leitura ultra reacionária do mundo. Ela continuará assim a obrigar os partidos do governo a se voltarem para intermináveis e, frequentemente, duvidosas barganhas com a oposição, o que reforçará, por sua vez, o descrédito da classe política no seu conjunto.


Em pleno crescimento, esta direita também encontra preciosos aliados na mídia. Desfrutando nesses espaços de uma ressonância inversamente propor­cional a seu peso eleitoral, ela se beneficia também da simpatia, mais ou menos apoiada da, mais ou menos explícita, de intelectuais de TV, convidados perma­nentes que se tornam os campeões de audiência deste “novo pensamento da direita” descomplexada, como os filósofos e escritores Denis Lerrer Rosenfield e Luiz Felipe Pondé, o geógrafo Demétrio Magnoli, o jornalista político Reinaldo Azevedo, o economista e editorialista da Veja Rodrigo Constantino ou ainda o historiador Marco Antonio Villa. Alimentada igualmente pelos “experts” do Instituto Millenium, uma rede de think tanks ultraliberais e neoconservadores, próximos de figuras de proa do movimento, esta paisagem midiática muito mar­cada à direita e dominada por alguns grandes grupos de comunicação, oferece agora uma tribuna inesperada a esta movimentação que sabe tirar proveito desta formidável caixa de ressonância (Solnik, 2012; Campos Mello, 2014).


Esta onda direitista é reveladora também de uma receptividade maior da sociedade brasileira às teses neoconservadoras, securitárias e antipetistas, bem como é sintomática de uma estafa do lulismo e de uma perda de confiabilidade do governo, paralisado por um segundo caso de corrupção, constrangido ao compromisso e à moderação política, não mais chegando a propor um verdadeiro projeto mobilizador e se tornando cada vez mais surdo às demandas das classes médias fragilizadas em um contexto econômico moroso. Para o PT e a esquerda em geral, bem menos representada no Congresso desde as últimas eleições (o PT perdeu cerca de 17 deputados), este aumento do poder da direita é indiscutivel­mente o anúncio de grandes dificuldades futuras. Enquanto alguns já sinalizam o risco de uma “venezuelização” da vida política brasileira, a esquerda social tenta organizar, de algum modo uma resposta. Mas talvez seja tarde demais.


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