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“Uma legião de imbecis”: hiperinformação, alienação e o fetichismo da tecnologia libertária

Atualizado: 9 de set. de 2018



“Uma legião de imbecis”: hiperinformação, alienação e o fetichismo da tecnologia libertária


Quando declarou que as redes sociais deram voz a uma legião de imbecis, Umberto Eco provocou um choque ao mesmo tempo previsível e surpreendente. Previsível porque uma afirmação tão contundente vinda de um intelectual de tamanho prestígio, ainda mais no momento em que ocorreu – a cerimônia de recebimento do título de doutor honoris causa pela Universidade de Turim, em 2015 –, inevitavelmente geraria espanto e até indignação, tanto por parte dos entusiastas da internet quanto por aqueles que, mesmo críticos em relação à nova tecnologia, viram ali uma insuportável manifestação de arrogância; surpreendente porque, afinal, ele não disse nada além do óbvio. Bastaria lembrar o que afirmavam as Escrituras sobre o infinito número dos tolos. Nelson Rodrigues, a seu tempo, não fez mais que confirmá-las ao destilar sua ironia sobre a vitória dos estúpidos, pelo simples e evidente motivo de que eles são maioria. Também muito antes da “era das redes”, Discépolo compunha um de seus mais famosos tangos e, ainda na década de 1930, pregava no século XX a pecha de “cambalache”.


Porém, considerar que o intelectual italiano apenas reiterou o que se sabe há milênios exige contrariar a crença arraigada de que a tecnologia tem o condão de alterar as relações sociais, e que o ambiente virtual cria uma realidade autônoma, descolada da base concreta que lhe deu origem. Não deveria ser muito difícil entender que o mundo virtual é uma expressão ampliada do mundo presencial. Ambos se interligam de tal forma que não há muito como separá-los: a vida cotidiana e a vida política são inevitavelmente permeadas por essa tecnologia e já não podem prescindir dela para existir. E, se o mundo virtual reflete as relações de força existentes no mundo presencial, é lógico concluir que essas forças, muito desiguais, buscam apropriar-se desse novo campo, no qual se reproduzem e se amplificam as relações de poder preexistentes, num sentido muito diverso da pretendida “horizontalidade” da “sociedade em rede”.


Neste artigo, reitero argumentos já apresentados em inúmeras ocasiões anteriores a respeito do tema, mas procuro avançar na tentativa de demonstrar como a insistência na expectativa de que a internet inauguraria uma nova era para a humanidade é a mais recente expressão do fetichismo da tecnologia. Procuro sustentar que a ideologia da assim chamada “era da informação” induz ao aprofundamento da alienação pelo excesso de oferta, ao mesmo tempo em que a propalada “horizontalidade”, que supostamente daria a todos o mesmo poder de voz e de influência, além de conduzir à mistificação que encobre as relações de poder, escancara as portas para a disseminação das chamadas “fake news”, instaurando um ambiente de absoluta insegurança informativa, com previsíveis consequências desastrosas.


Entendo, como Schneider (2015), que as infotelecomunicações são o mediador por excelência da luta ideológica contemporânea, encarando-as, antes de tudo, como porta-vozes do capitalismo financeiro globalizado, e que, na inspirada argumentação do autor, conquistaram para si alguns dos tradicionais atributos divinos, como a onipresença e a onisciência, porém não a onipotência, o que sempre abre alguma brecha para utilizá-las à contracorrente.


Não é disso que este artigo tratará, mas é preciso ressaltar que a investigação dessas possibilidades precisa partir do papel que as ITCs desempenham, formando e conformando o gosto – ou o senso comum –, por meio das engrenagens da velha indústria cultural dos tempos pré-internet. Pois, afinal, é do sistema capitalista que se trata, com seus renovados mecanismos de dominação, sempre apresentados positivamente, como o avesso do que são: como promessa de liberdade. É crucial perceber como essas engrenagens trabalham no sentido de promover sensações, estimulando um estado de permanente excitação que é condição para a manutenção de funcionamento do sistema.


O FETICHE DA TECNOLOGIA


A primeira questão a enfrentar é essa espécie de eterno retorno diante de toda grande inovação tecnológica: os abalos no mundo tal como o conhecemos provocam incertezas que geram normalmente reações contraditórias – catastrofistas de um lado, eufóricas de outro. É o que Álvaro Vieira Pinto (2005) chama de “maravilhamento”, esse misto de admiração e temor que é uma constante no comportamento humano, inicialmente manifestado diante dos fenômenos da natureza e depois estendido aos aparatos tecnológicos que a própria humanidade desenvolveu ao longo de sua história. Trata-se, segundo ele, de um traço “monotonamente repetido”: os contemporâneos sempre se “maravilham” com as grandes realizações de sua época, “que lhes aparece extraordinária, ímpar, sem precedente em grandeza e pujança”. Ao desprezarem, deliberadamente ou não, a perspectiva histórica em suas análises, os teóricos da tecnologia costumam elaborar teses ingênuas ou, pelo contrário, muito espertas e interessadas na difusão de certa ideologia a respeito do uso dessas novas ferramentas.


Vieira Pinto desenvolve esse raciocínio nas páginas iniciais de seu denso e extenso estudo sobre o conceito de tecnologia, concluído em 1973, mas publicado apenas em 2005. À parte certas considerações que mereceriam reparo pelo seu caráter datado, o trabalho conserva sua atualidade exatamente porque vai à raiz das questões e não se deixa levar pela aparência dos fenômenos (então) recentes nesse campo. A obra foi escrita em meio à excitação causada pela cibernética e a perspectiva de disseminação do uso dos computadores, que, como de hábito, dividiu opiniões apocalípticas e integradas: a automação nos transformaria em robôs e acabaria com a “essência humana” ou, pelo contrário, inauguraria um novo e promissor tempo de libertação para a humanidade. Vieira Pinto desmonta essas teses, buscando na história as raízes de sua análise e ancorando-a numa perspectiva dialética, que é o que pode desfazer a oposição estéril entre aqueles dois grupos identificados na obra clássica de Umberto Eco. De saída, demonstra o equívoco da oposição homem x máquina (ou técnica), humanismo x tecnologia, pois não há técnica ou tecnologia que não derive do engenho humano – e aqui sua crítica a Heidegger é particularmente notável. Da mesma forma, contraria os entusiastas daquela nova tecnologia, apontando a inversão de raciocínio que distorce a análise: “Se apenas admitirmos a transformação dos produtos sem condicioná-los à transformação daquilo que os produz, estaremos no puro terreno da intuição, do qual facilmente se resvala para o da ficção” (PINTO, 2005, v. 1, p. 49) – e aqui o principal alvo de sua crítica é McLuhan, mas a referência à derivação para a ficção diz algo sobre muito do que ocorre na academia, especialmente no campo da comunicação.


É preciso, portanto, partir da análise da produção, do sistema que cria determinada tecnologia, para verificar a quem ela serve e beneficia e como, inversamente, é possível apropriar-se dela num sentido contra-hegemônico. Trata-se de uma clara remissão a Marx, cujo método, no caso que aqui nos interessa, permite tentar apreender o que de fato o desenvolvimento tecnológico pode proporcionar de novo para as relações humanas, e verificar o que, anunciado como novo, expressa a mesma velha história da dominação de classe.


Não seria demais sugerir que o maravilhamento é uma expressão do fetiche da tecnologia, e aqui não se trata apenas de pensar na remissão ao entendimento clássico desse conceito marxista aplicado à mercadoria, que aparece como se tivesse atributos próprios e esconde a relação social que lhe deu origem, mas ao entendimento de que o fetichismo é uma modalidade da alienação produzida necessariamente no capitalismo. Na atualidade, o sentido mais evidente da fetichização da tecnologia digital está em atribuir-lhe o poder de apagar as diferenças postas nas relações sociais do mundo concreto, como se, de fato, todos, subitamente, passassem a ter o mesmo poder de se manifestar e, além disso, como se a manifestação de todos tivesse o mesmo peso. Nem seria preciso ir muito longe para perceber empiricamente o tamanho dessa falácia: no primeiro caso, bastaria observar, por exemplo, o comportamento de pessoas que restringem sua participação nas mídias sociais ao que não será mal visto por seus superiores em seus locais de trabalho, e, privadamente, justificam esses cuidados pela óbvia razão de temerem represálias, porque sabem que estão sendo permanentemente vigiadas. Quanto ao peso da influência, nem seria necessário mencionar que não é qualquer um que tem status – no sentido de reconhecimento público, independentemente do que represente – para falar e ser ouvido: a simples existência da expressão “influenciadores digitais” bastaria para indicar o contrário. Celebridades continuam a ser produzidas conforme a lógica da indústria cultural, da mesma forma que ocorre normalmente com quem logra obter prestígio acadêmico num ambiente altamente competitivo.


Outro sinal de fetichização da tecnologia seria atribuir-lhe poder revolucionário, como apressadamente tantos fizeram, entusiasmados com as “revoluções do Twitter” da Primavera Árabe: nem seria preciso comentar hoje, passados alguns anos, sobre o que esses movimentos resultaram, mas bastaria indagar por que o Twitter haveria de abalar o poder no Egito e na Tunísia, mas não no Irã nem no Bahrein.


Mas alertar para o caráter fetichista da tecnologia é quase ocioso, tendo em vista que o mundo do capital produz uma totalidade social fetichista: no dizer de Schneider (2015, p. 83), enquanto as coisas não forem feitas para satisfazer necessidades humanas – isto é, seus gostos –, enquanto, pelo contrário, “os gostos forem formados e capturados para que as coisas sejam feitas, como meros estágios funcionais para a multiplicação do capital, para sua concentração e reprodução ampliada, o sistema é fetichista”. Ou, como afirmou anteriormente Netto (1981, p. 88-89), as formulações sobre o fetichismo “deixam de ser pertinentes a mistérios singulares (o enigma da mercadoria, do dinheiro etc.)” e “passam a constituir os requisitos de uma análise genética (a translação progressiva do fetichismo da forma mercadoria para as formas de todas as instâncias e agências sociais, com a mercantilização geral da vida) e sistemática [...] da cultura da sociedade burguesa constituída”.


Netto (2013) assinala duas características fundamentais da dinâmica cultural do capitalismo contemporâneo:


[...] a translação da lógica do capital para todos os processos do espaço cultural (criação/produção, divulgação, fruição/consumo) e o desenvolvimento de formas culturais socializáveis pelos meios eletrônicos (a televisão, o vídeo, a multimídia). Essa cultura incorpora as características próprias da mercadoria no tardo-capitalismo: sua obsolescência programada, sua fungibilidade, sua imediaticidade reificante.

Em decorrência, embora rejeite como falseadora a classificação da sociedade burguesa contemporânea como “sociedade de consumo”, preferindo a formulação de Henri Lefebvre de “sociedade burocrática de consumo dirigido”, Netto (2013) afirma que nela se enraíza uma “cultura de consumo”, uma “sensibilidade consumidora” que se lança “à devoração indiscriminada e equalizadora de bens materiais e ideais”, a ponto de apagar a distinção entre real e representação: é o que o autor chama de “semiologização do real, em que os significantes se autonomizam em face dos referentes materiais e, no limite, se entificam”. Assim, podem se tornar objetos de pesquisa descolados do chão de onde surgiram.


Daí a necessidade de esclarecer a distinção de enfoque – que leva, consequentemente, a conclusões díspares – conforme o ponto de partida de análise seja a produção ou a comunicação. Essa distinção foi sintetizada assim por Marilena Chauí:


Como lembra Agnes Heller, o paradigma da produção é aquele que diz que o destinatário da teoria é um destinatário determinado. Ele é determinado pela luta de classes. O destinatário é, portanto, uma classe particular. E o paradigma da produção tem no seu centro o significado do trabalho, como apropriação pelo homem da natureza externa e, portanto, tem como centro a questão das habilidades e das técnicas. Enquanto que o paradigma da comunicação faz com que o destinatário da teoria seja a razão em geral, a humanidade em geral. Não se refere e não se dirige, portanto, a nenhuma classe e a nenhum grupo determinado. E tem como centro a ética e a sociedade civil, ou seja, a apropriação pelo homem da sua natureza interior; portanto, a questão das normas e dos valores. A produção enfatiza o problema da racionalidade instrumental; a comunicação enfatiza os problemas da racionalidade valorativa (CHAUÍ, 1992, p. 27-28).

O ambiente instituído com a disseminação da internet abriu o campo para uma avalanche de informações que produz impacto inédito, mas decorre de um previsível desenvolvimento das tecnologias de comunicação desde a revolução industrial. Não seria demais lembrar que “tudo que é sólido desmancha no ar” foi uma frase escrita em 1848 e sintetiza o abalo que o nascente capitalismo industrial vinha provocando, impondo-se com tal violência que, naquele mesmo ano, detonou em contrapartida uma série de movimentos revolucionários pela Europa, afinal sufocados ao preço de muitas vidas. É preciso, portanto, ter sempre em perspectiva a dimensão histórica dos fenômenos, para evitar teorizações apressadas sobre o caráter de novidade do que ocorre no momento em que vivemos.


Desse modo, a percepção de “aceleração do tempo” caminha junto com o desenvolvimento do capitalismo, porque esta é a lógica imposta por um sistema em que o tempo “é” dinheiro – no sentido muito objetivo de que a economia de tempo é decisiva para a ampliação do lucro, mas que traz consigo uma metáfora poderosa. As tecnologias de informação e comunicação foram se desenvolvendo cada vez mais rapidamente nesse sentido de urgência e através delas o ritmo do sistema – já há algumas décadas, o do mercado financeiro, que passou a ditar a regra globalmente – se impõe sobre a vida cotidiana, tendendo a invadir inclusive os mais íntimos detalhes da vida privada.


Essas tecnologias criaram o ambiente que Guy Debord classificou de “sociedade do espetáculo”. Embora considere que sua atuação representou “um verdadeiro acento colorido no marxismo cinzento dos anos 50 e 60 do século passado”, Christoph Türcke (2010, p. 11) levanta objeções ao autor francês. Primeiro pelo desejo de proclamar um novo tipo de sociedade – algo que seria típico do estado de inquietude geral, de excitação e efervescência da “sociedade da sensação”, desde o século XVIII. Depois porque ele “raramente aprofunda a análise, como se isso não fosse necessário, como se o trabalho de base da crítica social já tivesse sido feito e bastasse saber o que são o capitalismo e o fetiche da mercadoria e a única coisa que restasse fosse descobrir seus disfarces mais recentes”. Türcke (2010, p. 11-12) argumenta que a estetização espetacular não é apenas uma nova roupagem a ser removida para se revelar a verdadeira face do sistema, mas é algo que aderiu ao capitalismo, “é a sua pele, e não seu envoltório”. Por isso, considera que seria preciso redefinir os conceitos, como o de fetichismo, que “não é mais aquilo que foi quando insiste na fixação do sensório humano no espetacular”.


É uma abordagem estranha à obra de Marx – embora o autor seja referido recorrentemente nesse grande ensaio sobre a “filosofia da sensação” –, cujo caráter ontológico-totalizador busca a apreensão do movimento geral do ser social e precisa renovar-se para acompanhar as mudanças de seu objeto – a sociedade burguesa, que se transforma continuamente. Mas atentar para a maneira pela qual o sistema atua sobre as sensações para promover um estado de excitação permanente é algo essencial, que diz diretamente respeito ao funcionamento do complexo das infotelecomunicações (ITCs).


Adotando uma perspectiva rigorosamente marxista, Schneider (2015) incorpora esse tema em seu estudo sobre a dialética do gosto, no qual busca o duplo significado de “sabor” e “saber” dessa palavra, conjugado recorrentemente ao longo do livro. Começa por indagar: como se formam nossos gostos? A resposta à pergunta exige a análise do “papel dos fluxos comunicacionais na formação das preferências e escolhas dos sujeitos, da música à política”, e parte da compreensão de que “o gosto é expressão e medida do valor de uso dos bens, materiais e simbólicos, e ao mesmo tempo o substrato sensível das ideologias” (SCHNEIDER, 2015, p. 35-36).


Se os grandes conglomerados de mídia já eram fundamentais para a formação do gosto – e para a reprodução e consolidação da ideologia dominante – antes da chamada “revolução digital”, hoje esse papel é ainda mais significativo com a constituição das ITCs num gigantesco complexo tecnoempresarial. Sua “centralidade econômica e ideológica supera a de seus elementos constitutivos, quando tomados isoladamente”. Importa apreendê-lo como mediador fundamental da luta ideológica e também no aspecto econômico, como sistema produtor de mercadorias e de consumidores (SCHNEIDER, 2015, p. 148). Segundo o autor, as ITCs exercem, de fato, um triplo papel nas sociedades contemporâneas:


1) Enquanto dispositivo de produção, circulação e consumo de bens materiais e simbólicos, constituem um setor econômico de ponta; 2) enquanto dispositivo de sedução, participam ativamente na geração da demanda pelos bens materiais e simbólicos existentes, sejam aqueles diretamente produzidos por elas (produtos da indústria cultural e equipamentos necessários ao seu consumo), sejam aqueles nos quais elas participam na produção (tudo que envolva informática e telecomunicações), sejam aqueles que elas simplesmente anunciam (qualquer mercadoria); e 3) enquanto dispositivo de (in)formação, socializa, em diversas escalas, um repertório de representações do real, que incluem os bens materiais e simbólicos, junto a sistemas classificatórios, ou códigos valorativos, que dispõem esses bens e representações, uns em relação aos outros, em hierarquias entrecruzadas, menos ou mais complexas, dependendo do caso, o que envolve as ideologias, no sentido lato do termo (SCHNEIDER, 2015, p. 259).

Como porta-voz do capitalismo financeiro globalizado, as ITCs acentuam a separação dos fins, dos meios e da inspiração, reforçando a perpetuação da sociedade em classes:


1) Promovendo o sabor sem saber, na esfera do consumo, e o saber sem sabor, meramente instrumental, na esfera da educação formal, da reprodução social, legitimando assim a divisão trabalho (alienado)/lazer (consumista); 2) subordinando toda produção simbólica socializada a imperativos econômicos de ganhos de escala; 3) retroalimentando, de modo reificante, gostos e padrões de comportamento; e 4) construindo um imaginário coletivo que é em grande parte comum, apesar de desprovido de um lastro em experiências concretas comuns, borrando as fronteiras entre vivência e representação, homogeneizando gostos, práticas e mundivisões através de um processo de recalcamento da produção simbólica, que existe em potência e em ato nas experiências concretas extramidiáticas – não comuns em escala massiva, mas fragmentadas em classes e frações de classes, gêneros, etnias, faixas etárias, nacionalidades etc. –, mascarando assim a luta de classes e seus desdobramentos culturais (SCHNEIDER, 2015, p. 268).

Associe-se a isso um elemento crucial para o funcionamento dessa engrenagem: a ênfase no caráter lúdico, a oferta do “mundo divertido” (MORETZSOHN, 2012), porque transformar tudo em entretenimento é uma das estratégias mais eficazes de reprodução ideológica.6 Esse “mundo divertido”, que estimula o estado de excitação permanente, expressa o enunciado que o teólogo anglicano George Berkeley elaborou no século XVIII: “Esse est percipi”, “Ser é ser percebido”. Foi uma tentativa de construir uma teoria do conhecimento baseada nas sensações: nós dependemos das sensações que nossos órgãos sensoriais nos transmitem para conhecer o mundo, de modo que o que não for sensação não existe para nós. Porém, como diz Türcke (2010, p. 39), Berkeley concluiu que o que não existe para nós não existe de forma alguma. “É claro, isso é falacioso e foi inúmeras vezes refutado. O que só torna mais fascinante observar como, sob circunstâncias de alta tecnologia [...], uma proposição filosófica insustentável começa a ser verdadeira”, ainda que apenas “de certa forma”, ou seja, apenas na aparência: pois é claro que existe vida fora do mundo “conectado”, mas é como se não existisse, ou não importasse. É como se estivéssemos diante de uma nova ontologia, segundo a qual quem não emite não é: pode estar bem vivo, mas midiaticamente está morto (TÜRCKE, 2010, p. 45-46).


Esse raciocínio está diretamente ligado ao que chamei de “fetiche da velocidade” (MORETZSOHN, 2002), ao tratar do processo de produção de notícias “em tempo real”, que radicalizava uma contradição posta já no início do surgimento da imprensa como atividade industrial, em meados do século XIX: a promessa de “dar a verdade em primeira mão” sintetizava o ideal de transmitir com o máximo de agilidade as informações de interesse público, mas o compromisso prioritário com a verdade – a informação verdadeira, confiável – sistematicamente sucumbia diante da urgência imposta pelas necessidades do mercado concorrencial. Por isso, Paul Virilio (1996, p.

122) exclamava: “A informação só tem valor pela rapidez de sua difusão, ou melhor, a velocidade é a própria informação!”.


Essa é precisamente a lógica do capital nos tempos atuais, embora apareça descolada dele: é através da velocidade que o capital se realiza no “espaço de fluxos” do mercado financeiro global.


Se as tecnologias da comunicação caminham sempre no sentido da maior celeridade, seria previsível que, com a disseminação da internet e seu estímulo ao imediatismo, se configurasse o quadro atual de hiperinformação, que produz a cegueira pelo excesso, mais nefasta do que a cegueira pela treva que o projeto iluminista pretendeu dissipar: pois, diante da escuridão, podemos ser levados a perceber o que não sabemos e buscar saber, mas diante da luz intensa, passamos a ter a ilusão de saber e tendemos a ignorar que ignoramos.


A “ESTUPIDEZ COLETIVA” E A FORMAÇÃO DE BOLHAS


A famosa frase de Eco sobre os “imbecis” causou furor, mas foi dita em tom sereno e precedida de uma argumentação favorável ao papel da internet, como pode ser observado no trecho do vídeo que o Huffington Post (2015) incluiu na sua reportagem sobre o tema. Isto diz algo sobre as escolhas de ênfase na divulgação de notícias e sobre os objetivos de causar escândalo, especialmente nesses tempos em que as informações circulam com uma velocidade estonteante e a maioria não lê nada além dos títulos: a impressão que prevaleceu foi a de que o velho intelectual amante dos livros em papel rejeitava os novos tempos, o que não era bem o caso.


É certo que a declaração pode ser vista como uma manifestação arrogante de um teórico que se considera acima dos mortais. Mas não é disso que se trata. Quando deplorou que os “imbecis” passaram a ter “o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel”, quando lamentou que a internet promovesse “o idiota da aldeia a portador da verdade”, Eco assinalava o problema crucial do nivelamento dos saberes, tão exaltado pelos pós-modernos. A falsidade dessa perspectiva deveria ser óbvia e foi muito claramente sintetizada pelo jornalista português José Vitor Malheiros (2005) ao questionar o projeto da Wikipedia, baseado na ideia de que “o mercado, a competição aberta, permite alcançar o melhor resultado possível não apenas na economia, mas na ciência e na informação”. O problema, dizia ele, “é que... não é assim. De fato, existe um mundo objetivo que pode ser estudado e há pessoas que o estudam e que adquirem mais conhecimentos sobre determinadas áreas do que outras”.


Portanto, bem ao contrário da “inteligência coletiva” destacada no título de um famoso livro de Pierre Lévy, o mais correto seria falar numa “estupidez coletiva” amplificada exponencialmente agora no ciberespaço, e que reproduz o mais raso senso comum a respeito das mais graves questões – crime, uso de drogas, racismo e inúmeras formas de preconceito. Não é preciso uma pesquisa exaustiva nas redes sociais ou na seção de comentários dos jornais para perceber essa evidência. Junte-se a isso o automatismo que marca o comportamento dos usuários em geral: o compartilhamento de informações sem qualquer preocupação com a veracidade, que resulta na disseminação de boatos ou de trucagens assumidas como verdadeiras.


Aparentemente democrática e inclusiva, a defesa desse nivelamento de saberes acaba resultando no elogio da ignorância, com o resultado perverso de desqualificar, como autoritária, a voz dos que desenvolveram a capacidade de argumentar. Essa desqualificação conduz à perda de referências que poderiam contribuir para o esclarecimento público. Politicamente, o resultado disso costuma ser desastroso.


Já na última década do século passado, quando se começava a vislumbrar o potencial da internet para a criação de redes, era possível projetar que o resultado seria a criação de grupos autorreferentes, reunidos em torno de interesses comuns, fechados em si mesmos, precisamente o contrário das propaladas diversidade e ampliação de horizontes. A criação de guetos apenas favorece a publicidade dirigida e fortalece a consolidação de convicções, o que vai na contramão da abertura ao debate público e, consequentemente, só ajuda a aumentar a “legião de imbecis”. Ao mesmo tempo, provoca a ilusão de que o mundo se reduz a essas bolhas, o que é fatal na apreensão da realidade e induz a erro mesmo aqueles que precisariam estar atentos ao contraditório.


O estímulo ao “do it yourself” – essa ideia de que, se você não gosta da mídia institucionalizada, deve produzi-la você mesmo – implica algumas considerações. Primeiro, que informação aparece como uma questão de gosto, quando é uma necessidade. Segundo, que a obtenção de informações relevantes exige competência e dedicação específicas: não é algo diletante ou eventual que o cidadão comum envolvido em seus afazeres e preocupado com a própria sobrevivência possa realizar. Terceiro, e talvez mais relevante: a ênfase no indivíduo como fonte de uma “revolução”. Bowman e Willis (2003, p. 8), por exemplo, afirmavam que “qualquer um com o devido talento e energia” teria “condição de ser ouvido amplamente na web”.


Trata-se, portanto, de uma ode à iniciativa individual – melhor dizendo, ao “empreendedorismo” –, que ignora ou finge ignorar como se organizam as forças que atuam para exercer influência pública. Acena-se com a imagem sedutora de uma rede sem centro nem hierarquias, na qual todos, indistintamente, podem se manifestar legitima e espontaneamente. A verdade é bem outra e confirma o que deveria ser evidente: que o mundo virtual não cria uma realidade à parte, mas reproduz as relações de força do mundo presencial, inclusive e sobretudo nas disputas políticas. E o que comanda, sempre, é a lógica do capital.


Reportagens como a de Marina Amaral (2015) sobre “a nova roupa da direita” ou a de Lee Fang (2017) sobre a atuação da Atlas Network para a disseminação de seu ideário ultraliberal pela América Latina são muito esclarecedoras a respeito do surgimento, financiamento e atuação de movimentos organizados nas redes. No recente caso brasileiro, foram decisivos na articulação das manifestações que, em 2013, transformaram uma pauta pela gratuidade do transporte público – de fato, sobre o direito à cidade – num protesto nacional contra a corrupção e estão na origem do movimento de massas que deu legitimidade ao golpe de Estado três anos depois. Ainda sobre a atuação da Atlas, Kátia Baggio (2016) mostra a diversificação do investimento, que abrange cursos de formação de lideranças, seminários, participação na mídia tradicional – seja dos próprios jornalistas que trabalham nessas empresas, seja de convidados para debates e entrevistas – e intenso uso das mídias sociais, que inclui a disseminação de falsidades como arma de propaganda.


Não bastasse isso, há mais uma questão fundamental a se colocar como objeção à valorização do “do it yourself”: é que ela carrega em si a crença no senso comum como fonte de verdade, que supõe a possibilidade de um saber original e “puro”, autônomo, capaz de aflorar desde que livre de amarras. Ignora-se, em primeiro lugar, que as mediações nunca deixam de existir: hoje, transitam dos meios tradicionais para o complexo das infotelecomunicações (ITCs), que reproduz a ação ideológica da velha indústria cultural na retroalimentação de gostos e padrões de comportamento e na construção do imaginário coletivo (SCHNEIDER, 2015, p. 268); ignora-se, portanto, que inexiste a possibilidade de alguém falar com sua “própria” voz, já que essa voz é formada por um processo permeado necessariamente pelas ITCs.


O RISCO DO REBANHO SEGURO DE SI


Foram inúmeros os autores que criticaram e comentaram os efeitos alienantes da hiperinformação. Umberto Eco os repete ao dizer que “a imensa quantidade de coisas que circula é pior que a falta de informação. O excesso de informação provoca a amnésia” (GIRON, 2013). Na mesma entrevista, aponta uma distinção fundamental que derruba a crença na disseminação de conhecimento a partir dessa nova tecnologia: “A internet é perigosa para o ignorante porque não filtra nada para ele. Ela só é boa para quem já conhece – e sabe onde está o conhecimento”. O resultado pedagógico, a longo prazo, seria catastrófico: “Veremos multidões de ignorantes usando a internet para as mais variadas bobagens: jogos, bate-papos e busca de notícias irrelevantes”.


Talvez seja ainda pior, considerando que mesmo pessoas bem formadas tendem a compartilhar automaticamente informações falsas ou verdadeiras, mas antigas – quantas vezes já não se repetiram as condolências, em forma de emojis lacrimejantes, pela morte de alguém já falecido há tanto tempo? –, porque não conferem as datas da publicação nem verificam a origem da informação, embora saibam da existência de sites e blogs especializados em disseminar mentiras e boatos. Quanto às multidões, antes ficassem apenas nas “bobagens”: a onda que, por exemplo, afirma que o nazismo é uma ideologia de esquerda é talvez um dos exemplos mais eloquentes do cultivo da ignorância.


O combate a esse comportamento irrefletido exigiria a articulação de ações presenciais e virtuais – por exemplo, escolas ou movimentos sociais que aliem contato direto e atuação nas redes para esclarecer a necessidade de se certificar da veracidade das informações que circulam e desfazer equívocos. É uma perspectiva de ação coletiva, que orienta o comportamento individual e não o deixa à mercê da avalanche alienante. Significa dizer que se trata, o tempo todo, de adequar a luta política às condições tecnológicas postas no presente. Inclusive porque o fato de que hoje todos os que têm acesso à rede poderem transmitir é o que há de muito novo e muito preocupante: daí a necessidade de uma educação ética para que se entenda que nem tudo pode ser tornado público, que é preciso respeitar a intimidade e a privacidade, e que as próprias articulações políticas exigem um resguardo incompatível com esse apelo à publicidade irrestrita.


Encerro aqui com as observações de Nathan Heller (2016) sobre “a falência da democracia de Facebook”: “O espectro intelectual mais perigoso, hoje, parece não ser a falta de informações, mas ausência de uma esfera comum de informação em que seja possível compartilhar ideias além das fronteiras das crenças”. Citando o jurista Carl Sustein, ele conclui:


Aqueles que vivem em rebanho, na internet ou fora dela, acabarão tão seguros de si quanto errados, simplesmente porque não foram suficientemente expostos a contra-argumentos. Podem até passar a enxergar seus semelhantes como opositores ou adversários, em algum tipo de “guerra”. Um governo com essa perspectiva é perigoso. Mas um público desinformado e seguro de si é muito pior.

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