Adam Smith em Pequim: O mercado como instrumento de governo
- Camarada C.
- 18 de nov. de 2018
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Entre os "principais economistas do passado", Smith talvez seja "um dos mais amplamente citados e um dos mais raramente lidos" [3]. Sendo ou não verdade, porém, ele é, ao lado de Marx, certamente um dos mais incompreendidos. Três mitos em particular cercam seu legado: de que era teórico e defensor da "auto-regulação" do mercado; de que era teórico e defensor do capitalismo como motor da expansão econômica "interminável"; e de que era teórico e defensor do tipo de divisão de trabalho que se estabeleceu na fábrica de alfinetes descrita no primeiro capítulo de A riqueza das nações. Na verdade, ele não era nada disso.
Como Donald Winch argumentou de modo bastante abalizado, a descrição que Smith faz da economia política como "ramo da ciência do estadista ou legislador" e de sua própria contribuição como "teoria" ou conjunto de "princípios gerais" relativos à lei e ao governo, é uma caracterização exata de suas intenções e realizações [4]. Longe de teorizar um mercado auto-regulado, que funcionaria melhor com um Estado mínimo ou sem Estado algum, A riqueza das nações, assim como a Teoria dos sentimentos morais e as não publicadas Lectures on jurisprudence [Aulas de jurisprudência], pressupunha a existência de um Estado forte que criaria e reproduziria as condições de existência do mercado; usaria o mercado como instrumento eficaz de governo; regulamentaria seu funcionamento; e interviria ativamente para corrigir ou contrabalançar resultados social ou politicamente indesejáveis. Na verdade, o objetivo da economia política de Smith era tanto "dar ao Estado [...] receita suficiente para os serviços públicos" quanto "permitir a subsistência [...] com fartura para o povo, ou mais propriamente, permitir-lhe obter [...] essa subsistência para si" [5]. Nesse esforço, as esferas em que Smith aconselhava o legislador a intervir eram muitíssimas, como dar proteção contra ameaças internas e externas à segurança dos indivíduos e do Estado (polícia e defesa nacional), ministrar a justiça, prover a infra-estrutura física necessária para facilitar o comércio e as comunicações, regulamentar a moeda e o crédito e educar a massa da população para contrabalançar o efeito negativo da divisão do trabalho sobre sua qualidade intelectual. Nessas e em outras esferas, o conselho de Smith ao legislador baseava-se em considerações mais sociais e políticas do que económicas" [6].
A crença dogmática nos benefícios do governo minimalista e do mercado auto-regulado, típica do "credo liberal" do século XIX, ou a crença igualmente dogmática no poder curativo das "terapias de choque" defendidas pelo Consenso de Washington no fim do século XX, eram totalmente alheias a Smith. Na verdade, ele provavelmente concordaria com a tese de Karl Polanyi de que tais crenças são utópicas e impraticáveis. Esperar que a total liberdade de comércio se estabelecesse na Grã Bretanha parecia-lhe "tão absurdo quanto esperar que alguma Oceana ou Utopia venha a se instalar nela". E nem essa liberdade total ("perfeita liberdade", como às vezes ele a chamava) seria condição necessária para a prosperidade econômica. "Se nenhuma nação puder prosperar sem o gozo da perfeita liberdade e da perfeita justiça, então não há no mundo nação que já tenha prosperado." E embora Smith nunca deixasse dúvidas de que era favorável à liberalização do comércio, opunha-se com todo o vigor a tudo que lembrasse as terapias de choque das décadas de 1980 e 1990. Se grandes setores da economia fossem afetados, a mudança "jamais deve se impor de repente, mas de sim modo lento, gradual e depois de muito aviso". Deveria haver cuidado especial para retirar a proteção de setores que empregassem "grande número de mãos" ou do comércio de artigos de subsistência que despertasse forte reação popular. Na verdade, neste último caso "o governo deve ceder aos preconceitos [do povo] e, para preservar a tranquilidade pública, estabelecer o sistema que o povo aprova" [7].
O uso do mercado pelo governo, em outras palavras, tinha não só propósito social como também estava sujeito a fortes restrições sociais. Por exemplo, as razões pelas quais Smith achava absolutamente irreal esperar que o livre-comércio se estabelecesse de todo na Grã-Bretanha eram estritamente sociais.
"Não só os preconceitos do público, como também, de modo muito mais insuperável, o interesse particular de muitos indivíduos, se opõem terminantemente a isso. Se os oficiais do exército se opusessem a qualquer redução de suas tropas com o mesmo zelo e unanimidade com que os principais industriais se posicionam contra toda lei que possa aumentar o número de seus rivais no mercado doméstico, se os primeiros animassem seus soldados da mesma maneira com que os segundos inflamam seus trabalhadores para atacar com violência e indignação os proponentes de tal regulamentação, tentar reduzir o exército seria tão perigoso quanto hoje se tornou a tentativa de diminuir, em todo e qualquer aspecto, o monopólio que nossos fabricantes obtiveram contra nós." [8]
[3] Robert Heilbroner, "Economic Predictions", p. 73. Numa recordação pessoal, Frank nota que, como tantas vezes já se observou, "os três primeiros capítulos (dos 32) [de A riqueza das nações] [...] é o máximo que o imprudente leitor moderno avançará no livro. (Isso foi o máximo que tivemos no curso de Frank Knight sobre a história do pensamento econômico, na Universidade de Chicago. [...] Milton Friedman abandonou Smith quase totalmente, preferindo substituí-lo por Alfred Marshall [...] [[instruindo-nos] a aprender com as notas de rodapé dos Princípios de economia [...] e a relegar ao esquecimento quase todo o texto empiricamente rico e os apêndices)" (Andre Gunder Frank, "On the Roots of Development and Underdevelopment in the New World: Smith and Marx vs the Weberians", p. 121; destaque do original).
[4] Donald Winch, Adam Smíth's An Essay in Historiographic Revision. Ver também Knud Haakonssen, The Science of a Legislator: The. Natural Jurisprudence of David Hume and Adam Smith, e Patricia Werhane, Adam Smith and His Legacy for Modern Capitalism.
[5] Adam Smith, An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations [doravante The Wealth of Nations], v. 1, p. 449 [ed. bras.: A riqueza das nações].
[6] Donald Winch, Adam Smith's Politics, capítulos 5, 6 e 7; Knud Haakonssen, The Science of a Legislator, p. 93-5, 160 ss.; Patricia Werhane, Adam Smith and His Legacy for Modern Capitalism; e Jerry Z. Muller, Adam Smith in His Time and Ours: Designing the Decent Society, p. 140-8.
[7] A essência da argumentação e todas as citações desse parágrafo são de Donald Winch, "Science of the Legislator: Adam Smith and After", p. 504-9. A tese de que Smith teria concordado com a condenação de Polanyi ao credo liberal é minha. O próprio Polanyi é um pouco ambíguo a respeito da relação de Smith com o credo liberal. Embora critique Smith por inventar, numa leitura errada do passado, o conceito de Homem Econômico, ainda assim admitiu que "a riqueza era para [Smith] meramente um aspecto da vida da comunidade, a cujos propósitos permanecia subordinada [...]. Não há insinuação em sua obra de que os interesses econômicos dos capitalistas formulem a lei da sociedade; nenhuma insinuação de que seriam eles os porta-vozes seculares da providência divina que governaria o mundo econômico como entidade separada. Nele, a esfera econômica ainda não está sujeita a leis próprias que nos dão padrões de bem e de mal" (Karl Polanyi, The Great Transforrnation: The Political and Economic Origins of Our Time, p. 43-7, 111-2 [ed. bras.: A grande transformação: as origens da nossa época]).
[8] Adam Smith, The Wealth of Nations, v. 1, p. 493-4.
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