As garras dos Tigres Asiáticos
- Camarada C.
- 19 de ago. de 2018
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(Nota do Jornal A Pátria: esta matéria foi escrita para a edição 1045 da revista VEJA, em setembro de 1988, pelo jornalista Paulo Moreira Leite. Ela é um relato histórico e revelador das condições democráticas dos chamados Tigres Asiáticos nos anos 80, na mesma época em que o Brasil passava por seu processo de redemocratização.)
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O progresso da economia corrói as ditaduras e coloca os Tigres diante de um problema delicado na Ásia – a democracia
Toda conversa a respeito dos Tigres começa na beleza de suas economias e termina na feiura de suas ditaduras. Num desses países, Cingapura funciona uma ditadura em estado quimicamente puro: não existe liberdade de imprensa, e até os jornais estrangeiros têm sua circulação controlada pelo governo. Os adversários do regime perseguidos, e o conjunto da sociedade é submetido a um pacote de leis arbitrárias, o chamado Ato de Segurança Interna, que autoriza a prisão de uma pessoa por dois anos – sem julgamento. Atitudes que fazem parte do cotidiano da democracia são consideradas crimes em Cingapura, e podem ser punidas com castigos corporais - é o caso, por exemplo, da pessoa que coloca um cartaz de propaganda em local público sem autorização da polícia. Nesse caso, a punição prevista é tomar uma surra de bastonadas – doze pancadas com um bastão de 1,20 metro de comprimento e quase 2 centímetros de espessura.
Em outro Tigre, Taiwan, funciona um sistema político enlouquecido. Como ocorre em várias partes do mundo, nesse país, a Constituição determina que o presidente da República seja escolhido em eleições indiretas, através do Parlamento. Acontece que o Kuomintang, partido que está no poder há quarenta anos, não se considera apenas a legenda com direito a governar essa ilha onde vivem 20 milhões de pessoas - também se define como legítimo governante da China Continental, onde mora 1 bilhão e 200 milhões de pessoas e de onde suas lideranças saíram fugidas da revolução comunista, em 1948. Com essa desculpa, o Kuomintang não realiza eleições para renovar a maioria do Parlamento desde 1947, quando o partido ainda era o governo de toda a China – os deputados só perdem o mandato quando morrem, ocasião em que são substituídos pelos suplentes, também eleitos há quarenta anos. Quando não há mais suplentes para ocupar seus lugares, a vaga é fechada – e tudo fica como antes.
Na primeira metade do século XX, o pensamento conservador elogiava o fascismo italiano porque fazia os trens chegarem no horário. Nesse final de século, há quem elogie os Tigres por um motivo semelhante. É verdade que os trens ali, nem sempre chegam no horário - mas os vagões da economia estão em ordem. O problema, nessa matéria, é que lá, como aqui, as ditaduras produzem generais populares – e impopulares. São capazes de conviver com milagres econômicos - e com a recessão. Há trinta anos, quando a ditadura de Taiwan estava no máximo de seu apogeu e patrocinava ações terroristas no exterior, o país amargava uma inflação de 2.000% ao ano. Na Coreia do Sul, o regime dos generais conviveu com uma depressão econômica de seis pontos negativos, em 1980 - a pior de sua história. “Atribuir o progresso econômico à falta de democracia é um raciocínio sem fundamento no racional, mas no misticismo”, afirma o professor Joseph Cheng, da Universidade Chinesa de Hong Kong. “Só se pode acreditar nisso quando se imagina que as ditaduras, ao contrário das democracias, são capazes de produzir governos que não erram”, acrescenta.
A ditadura militar da Coreia do Sul, encerrada no ano passado com a realização de eleições diretas para a escolha do presidente da República, acumulou um arquivo com 27 anos de violências e irracionalidades. O primeiro general presidente, chamado Park Chung Hee, morreu assassinado durante uma noitada numa casa de gueixas de Seul - o autor do crime foi outro comandante militar, que na época chefiava o serviço secreto. Hoje em dia, a mulher, o cunhado e o sogro do sucessor do general Park, o ex-presidente e também general Chun Doo-Hwan, estão sob investigação parlamentar, acusados de corrupção e tráfico de influência. O irmão mais novo do ex-presidente, Chun Kyong-Hwan, já foi condenado a sete anos de prisão por aceitar suborno de empresários que queriam favores do governo. “A ditadura tem uma relação bastante misteriosa com a economia”, afirma o deputado Mun Dong Hwan, presidente do Partido da Paz e da Democracia, de oposição, a maior legenda no Parlamento da Coreia do Sul, onde dispõe de um terço das cadeiras. “A ditadura foi um governo de gângsteres, e procurar seu papel o desenvolvimento do país é igual a querer descobrir o papel de Al Capone no PNB de Chicago na década de 30”, acrescenta.

Os Tigres têm uma convivência de problemas com a democracia, esse tipo de governo que nasceu no Ocidente e só conseguiu fincar raízes sólidas num único país do mapa asiático, o Japão - mesmo assim, após a II Guerra Mundial, quando as liberdades públicas já haviam completado mais de 100 anos de existência na Europa e nos Estados Unidos. Pela geografia e pela História, os Tigres ficam num pedaço do mundo que traz a marca, em sinal invertido, das transformações produzidas na Ásia pela tempestade da revolução comunista de Mao Tsé-tung. Taiwan só deixou de ser uma ilha de agricultores a partir de 1948, quando ali desembarcaram 2 milhões de soldados e funcionários públicos que seguiam Chiang Kai-Shek, o ex-presidente vencido pelas tropas de Mao. A prosperidade de Hong Kong teve início nos anos 50, no momento em que essa colônia inglesa começou a receber empresário que fugiam do Exército Vermelho, com joias, dinheiro e até máquinas industriais na bagagem. A Coreia é um país que acabou dividido em dois pedaços – do Norte e o do Sul, no fim da guerra em 1953 - ao longo desse conflito, as tropas americanas sustentaram o governo do Sul e os soldados de Mao Tsé-Tung apoiaram o regime comunista estabelecido ao Norte. Como cultura, Cingapura é uma ilha onde se conversa num clima de Torre de Babel – nesse país, existem quatro línguas oficiais existem o inglês, o chinês, um dialeto indiano, tâmil e o malaio. A realidade, contudo, é que de cada dez moradores do lugar, sete têm a mesma origem – são chineses.
Na economia, a China perdeu - no país de Deng Xiaoping de hoje paga-se um ordenado trinta vezes menor que nos Tigres. Na democracia, a derrota também é grande – em nenhum lugar o regime político do Tigre pode ser comparado à ditadura que vigora na China, que só é liberal em matéria de investimentos estrangeiros. Quando se trata das liberdades públicas, no entanto, o sistema é uma tirania de ferro. “Olhando para o problema em perspectiva, nossos países têm uma chance histórica”, afirma o jornalista Antonio Chiang, diretor do The Journalist, de Taipé. “Podemos ser a primeira população chinesa que alcança a democracia.”
O centro nervoso do problema encontra-se nesse ponto. Quando se compara o ritmo da chamada transição política brasileira e o da coreana, por exemplo, a primeira impressão é de que há apenas uma diferença no cronômetro. Já no ano passado o eleitorado da Coreia do Sul foi às urnas para escolher seu presidente, oportunidade que os brasileiros só terão em 1989. A dificuldade de fundo, no entanto, é outra. Em 1987, os coreanos tiveram, pela primeira vez em sua História, eleições limpas, com liberdade assegurada aos partidos de oposição – num século em que passaram quarenta anos sob ocupação japonesa e enfrentaram três anos de guerra civil. No Brasil, as leis preveem eleições diretas, desde 1890, quando foi feita a Constituição da República. Para a Coreia do Sul, a eleição direta é um sinal de progresso. Para o Brasil, o simples fato de não ter havido eleições em 1965, 1970, 1975, 1980 e 1985, conforme estabeleciam, por exemplo, as regras da Constituição de 1946, é um sintoma de retrocesso.
A mais conhecida vulgaridade sociológica já produzida nos botequins brasileiros consiste naquele raciocínio que explica a sobrevivência de uma ditadura porque ela tem um bom desempenho na economia. A ideia até que seria ótima se pudesse ser testada – e aprovada -, ali mesmo na região, onde há ditaduras como a do Vietnã, por exemplo, cuja plataforma de exportação costuma atirar, em alto-mar, a única carga que o país pode enviar ao estrangeiro – os imigrantes clandestinos. Na realidade, as ditaduras sobrevivem porque trabalham, cotidianamente, para continuarem sendo ditaduras – com prosperidade ou recessão, inflação alta ou preços baixos. O primeiro-ministro Lee Kwan Jew, de Cingapura, não está no poder desde 1959 porque distribui casas populares para 80% dos habitantes do país, mas porque prende as lideranças de oposição, massacra os sindicatos e mantém um regime de censura que é capaz de proibir até canções dos Beatles. Nos outros Tigres, contudo, o bom desempenho da economia contribui para a produção de um fenômeno oposto – o avanço das liberdades.
“Estamos assistindo a uma situação bastante previsível”, afirma Kim Sang-Hyun, vice-presidente do Partido da Reunificação Democrática, da Coreia do Sul. “Quanto mais a economia se desenvolve, mais as pessoas querem melhorar seu padrão de vida e desejam mais liberdade para defender seus próprios interesses”, acrescenta. Na Coreia do Sul, vigora um tipo de restrição que só tem paralelo nos países comunistas. Nem todo mundo pode, por exemplo, ter um passaporte para viajar para o exterior. Pela legislação em vigor, uma pessoa só pode deixar o país como turista, depois de completar os 30 anos de idade – até o ano passado, a restrição alcançava qualquer cidadão tom menos de 55 anos. Apenas os executivos que viajam a negócio escapam a esse sistema. Há uma condição, porém: toda vez que esse funcionário é rebaixado de posto, e para de tomar o avião a serviço da empresa, perde o passaporte – e retorna à fila de espera dos cidadãos comuns. Nesse país, a ditadura militarizou o sistema de trabalho nas grandes empresas – na maioria delas, o Departamento de Recursos Humanos foi entregue a coronéis da reserva, encarregados de garantir uma disciplina de quartel entre os funcionários. Agora, no entanto, os sindicatos foram liberados, o direito de greve também - de um ano para cá, apenas, ocorreram 800 paralisações no país.
Em nenhum Tigre os partidos comunistas vivem na legalidade e, em Taiwan, a liberalização caminha em passos ainda mais vagarosos. Seu Parlamento, de 1.200 membros dos quais 1.000 tem cargos vitalícios, é um autêntico palácio da fantasia. Pouco mais de 100 postos são colocados para a disputa na urna, a cada quatro anos - e ainda existem 79 vagas reservadas a políticos que os próprios parlamentares escolhem entre seus amigos. O resultado é que, nesse plenário, cuja média de idade chegou aos 78 anos, há biônicos de todas as espécies - até mesmo internacionais. Um deles é o professor Hansen Chien, que desde 1976 se estabeleceu no Brasil, onde chegou a professor de Meteorologia da Universidade de São Paulo. Em 1983, abriu uma vaga no Parlamento de Taiwan, e Hansen Chien acabou escolhido para ir representar, em Taipé, uma parte da comunidade chinesa de ultramar, sem receber um voto sequer – nem em Taiwan, onde nasceu, nem em São Paulo, onde vivem sua mulher e suas duas filhas. “Agora, passo uma parte do ano em Taipé e outra em São Paulo”, afirma Chien, que licenciou da USP. Durante 39 ano, Taiwan viveu sob um regime de lei marcial, que proibia os partidos políticos de oposição, mantinha os sindicatos amarrados ao governo e a imprensa sob censura. Hoje, a censura aos jornais acabou, o direito de greve foi liberado, mas ainda existem restrições – as revistas masculinas são proibidas.

Em seu cotidiano, os Tigres têm uma rotina que assusta, como acontece nos choques violentos os estudantes e a polícia, na Coreia do Sul. Também são capazes de produzir espetáculos que constrangem, como as festividades do Dia Nacional de Cingapura, em que o governo monta uma pirotecnia de inspiração fascista pelo país, chegando a promover concursos, nas escolas para a produção anual de slogans juvenis que representam a variação local da frase “Ame-o ou deixe-o”. O melhor aspecto de sua rotina política, contudo, é mais silencioso. Existe uma lenda muito boa a respeito dos Tigres asiáticos, que trata da história de que todos os seus cidadãos são pessoas muito sérias, bem-educadas e vacinadas contra a corrupção. A realidade é que ali se rouba tanto como em qualquer outro lugar do mundo. Em Hong Kong, por exemplo, o governo local chegou a tomar uma medida inédita, nos anos 70, com a finalidade de convencer empresários desonestos que produziam produtos falsificados a retomar ao bom caminho. Num gesto que, na maioria das vezes, os governos utilizam para promover a pacificação política, a administração de Hong Kong anunciou uma proposta de conciliação de natureza diversa - a anistia aos corruptos. Na Coreia do Sul, estima-se que o mar de lama também chegue a proporções monstruosas. Conforme o relatório de uma entidade de empresários de Seul, a roubalheira coreana seria alguma coisa como 20 bilhões de dólares por ano, dinheiro que serviria para engordar a conta bancária de funcionários que mexem com verbas oficiais, reforçar o caixa de campanhas de políticos e até contrabandear dólares no câmbio negro. A novidade dos Tigres não reside no tamanho da corrupção nem nas técnicas utilizadas para se roubar o contribuinte - mas na atitude que o governo assume diante desse tipo de problema. Nesse pedaço do mundo, as penitenciárias têm celas recheadas de criminosos de colarinho branco, e os ministros de Estado, quando são apanhados em flagrante, são até capazes de se suicidar.
“Na mentalidade de nossos políticos, é possível fazer muitas coisas ruins”, afirma o professor Chung-in Moon, da Coreia do Sul. “Mas o fato é que existe um rigor de comportamento tão grande que ninguém pode alimentar, com facilidade, a esperança da cumplicidade e da impunidade geral”, acrescenta. Esse comportamento diverso, que é o do respeito à lei, também produz uma fisionomia mais saudável naquele delicado terreno da política onde aquilo que se faz com o passado de um país determina o que pode ocorrer com seu futuro. Na Ásia, como em qualquer outro lugar, as ditaduras produziram seus porões, que davam emprego a carrascos, que se dedicavam a torturar presos políticos. Em Taiwan, o aparelho de repressão já dispôs de um braço tão comprido que em 1985 foi até Los Angeles, onde alcançou o escritor dissidente Henry Lili, que morreu assassinado. A novidade nesse episódio, é o que veio depois. As investigações do governo de Taiwan demonstraram que dois generais que ocupavam a cúpula do serviço secreto haviam contratado uma quadrilha de bandidos comuns para dar uma lição” em Henry Liu - os dois foram condenados a dois anos e meio de prisão, apenas, porque não se provou que haviam ordenado, explicitamente, o assassinato do escritor. Na Coreia do Sul, há processos contra torturadores na Justiça - boa parte deles cumpre pena na cadeia.
Como qualquer coisa que está dando certo, os Tigres apresentam novidades através de qualquer ângulo pelo qual sejam examinados. Os mitos do Terceiro Mundo são tão velhos quanto as grandes navegações do século XV – mas sua realidade, no final do século XX, é ainda mais rica em surpresas. Já se atribuiu o progresso dos Tigres à ferocidade de suas ditaduras – mas o fato é que a prosperidade de suas economias começou a corroer seus regimes de força. Também se disse que cada Tigre é um país que vai para a frente porque ali impera o sistema do arrocho salarial – na verdade, sua distribuição de renda é bem melhor do que no país que ia para a frente junto com a Seleção da Copa de 70, no México. Por trás de cada hino de amor à prosperidade da Ásia há uma ilusão, que é a de achar que eles formam o Brasil que deu certo. Indiscutivelmente, os Tigres deram certo. Mas o que acontece com seus empresários, com seus trabalhadores, com a corrupção e com os torturadores mostra que cresce, ali um projeto mais ambicioso – o de um país bem diferente do Brasil.
O ditador da ilha

Aos 64 anos, o primeiro-ministro Lee Kwan Jew, de Cingapura, chefia uma das mais longas ditaduras da Ásia – pela antiguidade, seu regime, que teve início em 1959, só perde para o de Kim Il-Sung, da Coreia do Norte. Advogado com um diploma de Cambridge, Lee Kwan Jew pode ter sua carreira política comparada à de muitas personalidades na área e possui até um similar nacional - o ministro Almir Pazzianolto, do Trabalho. Como Pazzianotto, Lee lançou-se na vida pública através do movimento sindical e serviu como advogado de entidades que faziam greve. A diferença é que Pazzianotto encerrou a carreira ao garantir um emprego vitalício no Tribunal Superior do Trabalho, enquanto Lee chegou ao cargo de primeiro-ministro. Agora, ele prepara uma reforma na Constituição do país para assumir o posto de presidente da República – cargo meramente decorativo pelas leis atuais, mas que o primeiro-ministro quer transformar num posto de mando.
Amigo dos sindicatos quando estava na oposição, ao chegar ao governo Lee Kwan Jew fechou entidades que faziam greve e colocou suas lideranças na cadeia. A legenda que fundou, chamada Partido de Ação Popular, que até hoje está no poder, era uma coligação de intelectuais democráticos sindicalistas de esquerda e altos funcionários públicos. Logo depois de se tomar situação, no entanto, o PAP co1ocou sua ala esquerda na cadeia e submeteu a vida cultural do país a um regime de asfixia. Os jornais de oposição foram fechados, e hoje o governo de Lee Kwan Jew cultiva a ambição de controlar até aquilo que a imprensa internacional escreve a seu respeito. Publicações como The Wall Street Journal, versão asiática da mesma empresa que faz uma das bíblias do mercado financeiro, o The Wall Street Journal de Nova York, têm sua circulação limitada em Cingapura - só podem distribuir 400 exemplares diários, um décimo daquilo que vendiam antes de o governo impor essa restrição. O PAP gosta de promover eleições periódicas, com a condição de que possa ganhar - sempre. No último pleito, preparado com a prisão de intelectuais oposicionistas, obteve 61% dos votos e, graças ao sistema de distritos em vigor no país, o partido de Lee Kwan Jew ficou com oitenta das 81 cadeiras disponíveis no Parlamento.
“A política de Cingapura é igual a representar uma tragédia de Shakespeare sem ter o ponto”, costuma dizer o primeiro-ministro, que em outra encarnação biográfica, fica parecido com o ditador italiano Benito Mussolini – foi socialista na juventude e hoje chefia um regime de inspiração fascista.
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