As três faces ideológicas da identidade petista
- Camarada C.
- 2 de set. de 2018
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Atualizado: 11 de dez. de 2019

As principais obras de referência para o estudo do Partido dos Trabalhadores (PT) no período de sua formação foram as elaboradas por Meneguello (1989) e Keck (1991). A despeito da inestimável contribuição dessas duas obras, consideramos que ambas, de modo direto e indireto, descuram da crítica a três teses centrais que constituíram o que poderíamos chamar de “ideologia petista”, ou simplesmente “petismo”, entendendo-a como ideologia dominante no interior deste partido, tendo sido consolidada principalmente entre meados dos anos de 1980 e o início da década de 1990, a saber: 1) o PT não possui nenhuma referência internacional; 2) o PT não possui uma referência doutrinária unívoca; 3) o PT é portador de uma concepção original de democracia, daí advindo a defesa do chamado “socialismo democrático”.
Tal posicionamento acrítico teve um duplo efeito sobre as análises acerca do Partido dos Trabalhadores, realizadas nos últimos anos, pois, não só reforçou a “ideologia petista”, como também criou impasses metodológicos, à medida que concebia como limite da análise científica o conhecimento do nível das representações que o PT “fazia de si” e, consequentemente, a aceitação da ideia segundo a qual aquilo que o PT “fazia de si” correspondia ao que o mesmo “era na realidade”. A fim de polemizar com tal posicionamento, consideramos importante apresentar algumas reflexões críticas às três teses acima mencionadas.
A ideologia da “ruptura sem precedentes”
Ao afirmar que não possuía nenhuma referência internacional, o PT buscava apresentar-se como uma antítese das experiências dos partidos comunistas e social-democratas do século XX, o que levou o partido a se auto-denominar “pós-comunista” e “pós-social-democrata” e, por consequência, defender um socialismo que se distinguia do socialismo real e da social-democracia europeia.
Ao contrário das interpretações que dissociam o PT de quaisquer tipos de experiência de organização de classe no plano internacional e nacional, caracterizando-o como uma “anomalia” ou como uma “ruptura sem precedentes”, sustentamos que tanto as elaborações programáticas quanto a prática política desse partido político estão, direta e indiretamente, vinculadas à história do movimento operário do século XX, em geral, e aos embates políticos enfrentados pelo movimento operário brasileiro, em particular. Como assegura Berbel (1991, p. 16), “(…) se a autonomia e a estreita relação do PT com os movimentos sociais constituem-se em novidade na vida político-partidária do país, a sua origem pode-nos levar a observar, no diálogo com os agrupamentos que o antecederam, traços de continuidade”. Essa autora observa que as interpretações, que defendem a “absoluta novidade” representada pelo PT, são parte da “ideologia” desse partido político, ou melhor, são parte da “auto-imagem” deste, que sempre buscou se diferenciar da tradição de organização partidária no Brasil, em particular, dos partidos de esquerda.
Diferentemente desta primeira tese, algumas análises têm evidenciado convergências entre o PT e a tradição social-democrata. Ao traçar uma caracterização geral da social-democracia, Coelho (2001) apresenta, por exemplo, como elementos comuns à tradição social-democrata as seguintes características: a forte presença de bases sindicais, o perfil partido de massas e o compromisso com reformas sociais. De acordo com a autora, não haveria motivos para dissociar o PT dessa tradição, já que todas essas características estão presentes na formação do PT.
Guimarães (1990) salienta que partidos como o Partido Social-Democrata Alemão (PSDA) e o Partido Socialista Italiano (PSI), criados respectivamente em 1875 e 1892, apesar de terem origem anterior à organização do movimento sindical, possuem trajetórias análogas ou muito próximas à do PT. O autor evidencia, numa análise comparativa entre os três partidos, ao menos sete aspectos em comum: a) todos refletem anseios mesclados de representação, participação e emancipação de um proletariado de importante peso social; b) todos tendem a estabelecer uma segmentação entre a prática parlamentar e a sindical; c) todos se constituem enquanto partidos de massa; d) todos possuem uma heterogeneidade interna, inclusive, no plano estratégico e doutrinário; e) todos convivem com um crescimento qualitativo da classe trabalhadora, fruto da expansão da economia capitalista; f) todos fazem parte de sociedades nas quais os trabalhadores, na maioria dos casos, são carentes de direitos políticos e sociais; g) o núcleo da dinâmica desses partidos é permeado pela tensão estratégica entre reforma e revolução.
Ainda nessa perspectiva comparativa do PT com os partidos social-democratas europeus, podemos notar pontos de convergência entre o PT e o Partido Trabalhista da Inglaterra. A criação desses dois partidos foi resultado do desenvolvimento da luta dos movimentos sindicais de seus respectivos países, o inglês, com o cartismo na segunda metade do século XIX, e o brasileiro, com o “novo sindicalismo” surgido na região do Grande ABC. Esses dois casos são exceções de âmbito mundial, já que se constituíram como os únicos partidos de massa criados pelos sindicatos. Nos outros países, os partidos de massa, vinculados às classes trabalhadoras, foram os responsáveis pela constituição dos sindicatos.
Além do vínculo entre o partido e o sindicato dos trabalhadores, outra característica desses partidos políticos é a convergência no campo programático no qual é perceptível o peso da tradição social-democrata sobre as suas definições táticas e estratégicas. Esses partidos defendem a luta por reformas no capitalismo e, apesar de apresentarem um discurso de defesa do socialismo, não o concebem de acordo com a ideia de ruptura com o capitalismo. Como observa Wood (2003), é possível identificar mais de um tipo de movimento anticapitalista, desde aqueles que querem substituir o sistema capitalista até aqueles que o encaram como o único jogo disponível e “desejam apenas que os capitalistas sejam mais humanos e mais socialmente responsáveis”. Em linhas gerais, o PT e o Partido Trabalhista inglês, na época de sua constituição, apresentaram propostas que se aproximavam mais da segunda definição, assumindo um viés mais propriamente reformista do que revolucionário.
Entre os que não associam o PT à tradição social-democrata, destacamos Bucci (1991) que sustenta que o programa social-democrata do PT é atípico, inédito e inventivo. Para ele, o partido tem como primeiro compromisso a democracia, isto é: “Sua vocação é a garantia da democracia, o que ocasionou a inclusão (acertada, nesses termos) do ‘socialismo a definir’ entre suas palavras de ordem”. Esse autor nega, portanto, o vínculo com a tradição social-democrata, afirmando ser a social-democracia petista algo de inovador.
Garcia (1990) também não aceita a vinculação do PT à socialdemocracia, mas se distingue da análise de Bucci (1991) por entender que o PT é uma “ruptura sem precedentes” com a história da esquerda brasileira e internacional, não fazendo sentido falar, dessa maneira, de uma “socialdemocracia inventiva”. Para Garcia (1990), deve-se fazer essa distinção, pois, ao contrário da tradição social-democrata, “o PT não reivindica uma filiação doutrinária, marxista ou de qualquer outro tipo. [Mas], afirma seu pluralismo ideológico, ou o seu caráter ‘laico’”. No entanto, as teses desse autor parecem ser bastante contraditórias, pois a despeito de apresentar o “pluralismo ideológico” como o diferencial, ele sustenta uma série de características da social-democracia que, no nosso entender, são partes constituintes da formação do PT, tais como: a) “[A social-democracia] supõe, na sua origem, uma forte presença operária industrial na sociedade, que se desdobra em um poderoso movimento sindical, provocando depois, a formação do partido”; b) “A proposta social-democrata, em sua origem, e, ao menos, em sua retórica, durante décadas, foi um projeto classista.”; c) “As experiências da social-democracia têm como cenário a democracia representativa, que se amplia e radicaliza com a intervenção do movimento operário”. Ademais, o “pluralismo ideológico”, ou ainda, o caráter “laico” do PT tidos como experiências originais desse partido político também podem ser questionados, uma vez que “há muito a Social-Democracia também se proclama ‘laica’, isto é, não marxista” (COELHO, 2001, p. 119).
Ainda sobre a discussão sobre se o PT é social-democrata ou não, Azevedo (1995, p. 79) apresenta uma tese distinta da que vimos. Para o autor: “Embora o PT, desde sua fundação, condene o stalinismo e a social-democracia, anunciando o ‘socialismo democrático’, na verdade não foi capaz, até hoje, de formular um projeto político ao mesmo tempo socialista e democrático (ou democrático e socialista)”. O autor confere uma caracterização híbrida para o partido, que poderia ser superada, desde que fossem depurados os elementos de “autoritarismo” do partido, supostamente herdados da tradição leninista.
Diante do exposto, é possível afirmar que o Partido dos Trabalhadores, no período de sua formação, mantém traços muito aproximados do perfil político dos partidos social-democratas europeus. Isso não quer dizer que ocorreu no PT uma pura importação do modelo europeu; o partido, tendo como referência as experiências de luta do movimento operário do século XX, traçou uma trajetória política que tem vínculos estreitos com uma das tradições desse movimento: a tradição social-democrata. Essa é a forma de fazer política que predomina no partido, na sua formação – o que não quer dizer que não haja confluência de outras correntes dentro do partido que sejam filiadas às mais distintas tradições do movimento operário nacional e internacional.
A ideologia do “pluralismo irrestrito”
Quanto à não filiação doutrinária defendida pelo PT, a ideia central era apresentar esse partido político como uma organização plural do ponto de vista ideológico. Essa tese dava sustentação à ideia segundo a qual o PT não possuía um modelo de socialismo pré-definido, justamente porque era marcado por uma heterogeneidade de ideologias e, portanto, a adoção de uma doutrina unívoca limitaria a democracia no interior do próprio partido. O que estava implícito nessa formulação era a contestação do marxismo como corpus teórico que orientasse o programa político do PT. Isso pode ser evidenciado na polêmica que Florestan Fernandes (1991) travou com a tendência dominante do PT, no decorrer da fase preparatória de discussões do 1o. Congresso Nacional do PT. Como Fernandes (1991, p. 07) atestava: “Tornou-se corrente a condenação do marxismo e o uso do conceito ambíguo de “socialismo democrático” após os acontecimentos do Leste europeu e as alterações que ocorrem na União Soviética. A condenação do marxismo é extemporânea e seria inconcebível qualquer manifestação do socialismo que não fosse democrática”.
O suposto “pluralismo ideológico” e o ambíguo conceito de “socialismo democrático” defendido pelo PT, podiam ser tomados como indicadores de manifestação contrária de adequação doutrinária do PT ao marxismo. Como se pode constatar nas resoluções desse partido político:
O PT entende que a diversidade de desejos e ideias é inerente à condição humana, razão pela qual a pretensão de suprimi-la não passa de um projeto de violentação da humanidade. Lutamos por uma sociedade efetivamente plural, mais um motivo para sermos anticapitalistas, pois o capitalismo, ao oprimir e alienar os indivíduos, só admite, de fato, uma pluralidade restringida pela desigualdade de oportunidades. Mas motivo também para rechaçarmos a chamada “pluralidade para os partidos operários”, ou seja, “para quem pensa como nós”, que, historicamente, só pode levar a formas de ditadura (Resoluções de Encontros e Congressos , 1998, p. 500) (grifos nossos).
Nessas resoluções, o PT criticava a ideia de “ditadura do proletariado” e, em seu lugar, propunha o pluralismo ideológico como forma de promover o equilíbrio harmônico entre os membros da sociedade e superar os limites supostamente impostos por essa forma ditatorial. No entanto, cabe observar que o discurso do pluralismo ideológico – e irrestrito – parecia ter a função de dissimular as desigualdades no plano da inserção dos membros da sociedade na produção social, em nome da apologia da heterogeneidade de valores e ideias.
De acordo com as resoluções petistas, aparentemente era possível realizar o pluralismo ideológico sem romper com os obstáculos estruturais do capitalismo, ou de outro modo, o pluralismo irrestrito seria exequível se fosse ampliado os espaços democráticos na sociedade capitalista. Nesse sentido, a ideia de pluralismo ideológico do PT provavelmente afigurava-se como uma réplica dos pressupostos da democracia tal qual praticada na sociedade capitalista.
No interior do PT, o pluralismo ideológico, ao fazer a apologia da diversidade de ideias e propostas apresentadas pelas tendências políticas que são parte desse partido político, tinha a função de escamotear a existência de uma linha de pensamento dominante no interior do partido que se confrontava com as demais e, portanto, de ocultar o reduzido espaço que essas diversas propostas podem ter sobre os rumos seguidos pelo PT.
Como observa Azevedo (1995, p. 79), a corrente majoritária do partido, a Articulação, fundada em 1983, anunciava desde seu manifesto de fundação que “foi criada para barrar o crescimento das tendências vanguardistas (…) e da tendência que via o PT como uma frente parlamentar, à semelhança do MDB”. Dessa forma, a tentativa de desposar o PT de qualquer doutrina oficial de socialismo é um tanto quanto problemática, principalmente se levarmos em consideração que a corrente hegemônica do partido possui uma posição política de oposição ao socialismo científico6. Em nome de um suposto pluralismo ideológico e de um socialismo “processual”, os esforços realizados para depurar os elementos dissonantes do partido sempre estiveram presentes na linha política hegemônica do partido. Enfim, se o socialismo petista não é apresentado pela afirmativa, ele o é pela negativa de experiências anteriores.
Essa questão pode ser evidenciada no processo de estabelecimento da lei de tendências internas do PT. No 4º Encontro Nacional, realizado em 1986, o PT aprovou uma resolução que previa a necessidade da regulamentação de tendências internas no partido, desde que essas não se constituíssem enquanto partidos dentro do partido. O partido via, nesse processo de constituição do direito de tendências, a possibilidade de fortalecer a unidade partidária. Essa foi a primeira resolução aprovada sobre tendências em âmbito nacional no partido e, mais especificamente, num encontro nacional.
Com a aprovação do direito de tendências, o PT estabelecia uma configuração particular de partido, a saber, o partido com tendências, como forma de garantir o pluralismo ideológico e, sobretudo, a democracia nas instâncias partidárias. O PT, em sua proposta, rejeitava, com isso, tanto a concepção de partido de tendências, que impedia a incorporação de militantes independentes, como a concepção de frente de partidos, que, segundo o PT, poderia enfraquecer a unidade de suas políticas. No entanto, o que aparecia em seus aspectos burocrático-administrativos como um incentivo à unidade partidária no plano da ação política apresentou-se como uma política que visava dirimir as oposições internas e, através disso, fortalecer o poder político da direção do partido, assegurado quase que exclusivamente pela tendência Articulação, em detrimento das bases que constituíam o próprio PT.
Se no período de formação do partido prevaleceu a política de integração das diversas correntes do campo da esquerda brasileira, num segundo momento, fica clara a política de restrição a esses grupos dentro do partido. Obtendo a maioria absoluta nas instâncias de direção do partido, a tendência Articulação teve espaço para promover mudanças no estatuto do partido as quais favorecessem a sua posição.
O conjunto desses exemplos concretos confronta-se com a tese do suposto caráter irrestrito do pluralismo ideológico petista. Como vimos, o pluralismo petista também manifesta um caráter restrito, o que nos leva a considerar o estatuto de universalidade como uma operação arbitrária correspondente à ideologia do partido.
A ideologia do “democratismo”
Ao colocar-se como portador de uma concepção original de democracia, o PT procurava desvencilhar-se da visão que a esquerda “tradicional” oferecia à democracia, concebendo-a apenas como uma etapa, um instrumento, um meio. Para esse partido, a democracia não poderia ser encarada apenas como um meio, mas também como um objetivo a ser alcançado, um fim. Essa concepção de democracia sustentou a tese do “socialismo democrático”, tal qual defendido pelo PT: o “socialismo com democracia”, para se contrapor às experiências históricas do socialismo real. Ou como aparece nas resoluções do 1o Congresso Nacional do PT,
(…) socialismo é sinônimo de radicalização da democracia (…) Afinal, “democracia, para [o PT], é simultaneamente meio e fim”. Dizer isso implica recusar todo e qualquer tipo de ditadura, inclusive a ditadura do proletariado, que não pode ser outra coisa senão ditadura do partido único sobre a sociedade, inclusive sobre os próprios trabalhadores (Resoluções de Encontros e Congressos, 1998, p. 500).
Esse partido político buscava oferecer, dessa maneira, uma concepção original de democracia, que não estaria associada apenas a uma visão instrumental ou tática, mas deveria ser caracterizada também como um valor estratégico, ou ainda, como um valor em si: “(…) a democracia tem, para o PT, um valor estratégico. Para nós, ela é, a um só tempo, meio e fim, instrumento de transformação e meta a ser alcançada” (Resoluções de Encontros e Congressos, 1998, p. 429)7. Com essas colocações o PT procurava se diferenciar do papel conferido pela chamada “esquerda tradicional” brasileira à questão democrática, isto é, enquanto a “esquerda tradicional” dava um papel secundário à democracia, concebendo-a apenas como um instrumento, o PT supostamente teria uma concepção mais ampla, à medida que tomaria a democracia como um fim a ser alcançado.
Traçando um panorama histórico sobre o papel que a esquerda brasileira conferiu à democracia, Toledo (1994, p. 128) observa que se, por um lado, até meados dos anos de 1960, a esquerda brasileira sob a hegemonia do PCB dava uma importância secundária à questão democrática, visto que para essa esquerda “enquanto o desenvolvimento econômico e as reformas sociais estruturais não se efetivassem, a democracia política não deixaria de ser ‘formal’ ou ‘abstrata’ para o conjunto dos trabalhadores e das massas populares”; por outro lado, a esquerda do período posterior – poderíamos dizer, hegemonizada pelo PT – concebe a democracia como um valor estratégico para os trabalhadores, e, nesse sentido, “para o conjunto da ‘esquerda democrática’, não faz mais sentido utilizar a noção de ‘democracia burguesa’ para identificar os regimes políticos de natureza representativa existentes nas sociedades capitalistas contemporâneas. Significa isso que a ‘democracia moderna’ (…) não tem mais um caráter de classe” (TOLEDO, 1994, p. 130).
Diante dessas colocações, podemos tecer algumas conclusões sobre os pressupostos norteadores da concepção de democracia defendida pelo PT. Quando percebemos a ausência da tematização do caráter de classe da democracia, não operamos com um simples jogo retórico, mas sim consideramos que isso tem implicações no plano da luta de idéias. Uma das principais referências teóricas da concepção petista de democracia como um fim em si, Weffort (1984) mostra-nos que ao longo da história a democracia foi instrumento “da aristocracia contra o absolutismo monárquico”, depois da “burguesia contra a aristocracia”, e agora “do operariado e das massas populares contra a burguesia”. Nesse sentido, o autor conclui que quando as conquistas democráticas chegam aos trabalhadores, “passam a dizer respeito a todos os homens”, isto é, torna-se um “valor universal”. É esta a concepção de democracia que aparece nas resoluções petistas.
No entanto, parece ser improcedente caracterizar a democracia política como um poder exclusivo dos trabalhadores, isto é, como sendo algo que atenderia prioritariamente os trabalhadores em detrimento das frações burguesas. Como as experiências mais recentes de vários países têm nos mostrado, a democracia política não é um obstáculo à dominação de classe da burguesia. Ao conceber a democracia como valor universal, nega-se o seu caráter de classe e, portanto, os “limites intransponíveis ou obstáculos estruturais para a ação das massas trabalhadoras em suas lutas pela ampliação e expansão da ordem política democrática” (TOLEDO, 1994, p. 130).
É possível dizer que há três aspectos principais que sustentam a concepção de democracia do PT e, pelo fato de essa ser um valor estratégico, dão base também à concepção de socialismo desse partido, entre os quais destacamos: a concepção de democracia como valor universal – expressa nos termos “democracia como meio e fim” –, a negação de seu caráter de classe – através da ideia de universalidade – e a ideia de que os trabalhadores podem obter hegemonia nas instituições políticas do capitalismo.
Se esses são os aspectos teóricos gerais da ideia de democracia do PT, podemos ainda indicar algumas das consequências práticas que essa concepção pode gerar, citando as experiências dos núcleos de base e as reformulações que vieram a ter a proposta de conselhos populares.
O “democratismo prático”
Os núcleos de base foram importantes instâncias políticas criadas no interior do PT, visando não só romper com a separação hierárquica entre direção partidária e base, mas também fomentar a formação política dos militantes petistas. No entanto, a despeito de os núcleos de base terem a função de criar mecanismos de democracia direta e terem sido motivo de preocupação do PT durante os anos 80 e idos de 90 – como demonstra as resoluções dos encontros nacionais realizados –, os avanços feitos para sua consolidação e ampliação foram bastante reduzidos. Na verdade, como apresenta Brandão (2003), o PT não logrou superar o progressivo processo de esvaziamento dos núcleos de base, que mesmo quando existiam, por vezes, eram inoperantes. O fracasso das tentativas de implantação de mecanismos de democracia direta no PT resultou no alinhamento às formas de representação políticas típicas da democracia liberal que estabelece apenas uma igualdade formal entre os indivíduos, não superando, ao contrário do que pretendia, a divisão direção/bases.
As reformulações que sofreu a proposta dos conselhos populares, defendida pelo PT, parecem ser outra prova do progressivo alinhamento à democracia representativa liberal em detrimento dos mecanismos de representação direta. De acordo com Costa (1998), até 1987, o PT manteve a proposta de “governar com os conselhos populares” em suas resoluções políticas, mesmo que tal política tivesse rara incisão nas administrações municipais desse período. Além disso, o autor observa que a proposta dos conselhos populares sempre assumiu uma posição ambígua dentro do partido, ora sendo entendida como elemento de democratização do estado e ampliação da esfera pública, ora sendo compreendida como estratégia de duplo poder e, portanto, como elemento de questionamento do sistema representativo, reafirmando, portanto, a lógica de mobilização popular em detrimento da lógica institucional.
Ocorre que, a partir de 1988, o PT se insere num outro contexto político, elegendo-se em 36 prefeituras, dentre elas, três capitais brasileiras – São Paulo (SP), Porto Alegre (RS) e Vitória (ES) –, além de obter expressivo crescimento nos legislativos municipais, passando a ocupar 900 cadeiras. O partido, então, reatualiza a temática dos conselhos populares sob a égide do Orçamento Participativo (OP), através do qual se dirime o questionamento do sistema representativo e ganha mais espaço a proposta de construção e ampliação da esfera pública em detrimento da visão classista que era incorporada pelo partido com certo grau de ambiguidade.
Segundo Costa (1998), após 1992, o PT teria inaugurado um terceiro ciclo de gestões, cujas principais características seriam: a substituição completa da visão conselhista pela discussão do orçamento participativo, visto como substrato para a ampliação da democracia representativa; a valorização do poder local que levou o partido a detalhar mais as políticas públicas – saúde, educação, transportes etc. – e a descartar a ideia de estatização; a incorporação sistemática das noções de indivíduo/cidadão que passava alimentar os projetos políticos do partido acerca da participação popular; a assunção do mote “O PT é bom de governo”, para se distinguir do seu passado, que seria supostamente marcado por uma visão pouco pragmática.
Considerações finais
Ao fazer os apontamentos acima sobre os elementos constitutivos da autoimagem do PT no início dos anos 90, “ruptura sem precedentes”, “pluralismo ideológico” e “democratismo”, não os fizemos sem razão. Diversos estudos sobre o PT, realizados entre o final dos anos de 1980 e ao longo dos anos de 1990, embora tenham constituído uma fonte rica de pesquisas exploratórias sobre esse partido político, não lograram superar a ideologia da corrente hegemônica do próprio partido, o que os conduziram a análises bastante descritivas e formalistas sobre o tema. Tais análises contribuíram, em grande medida, para ocultar as ambiguidades e a integração passiva do PT à ordem burguesa, dificultando em demasia o entendimento da prática política desse partido.
Entre os intelectuais progressistas não faltaram aqueles que se surpreenderam com a guinada à direita, quando Lula venceu as eleições de 2002. No entanto, tal tipo de posição e reflexão teórico-política descura do fato de que os elementos que informam essa guinada estão, em alguma medida, presentes no próprio programa político e na prática efetiva desse partido desde o seu nascimento. Enfim, a integração do PT à ordem burguesa não foi mero acaso, mas sim é fruto da ausência de um programa e uma prática política que estivessem à altura da luta dos trabalhadores ao longo dos últimos dezessete anos, quando o bloco no poder neoliberal emplacou importantes vitórias contra os trabalhadores no país.
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