China defende o livre comércio entre as nações: qual a surpresa?
- Jornal A Pátria
- 28 de jan. de 2017
- 10 min de leitura
(Bruno Torres, 28 de janeiro de 2017).

É interessante o alvoroço gerado em certos segmentos políticos com a declaração da China. Os setores liberais elevam isso como uma prova da justeza e vitória do liberalismo sobre o socialismo (levado aqui como planejamento econômico). E amplos setores da esquerda falam a mesma coisa que esses liberais alegam, que o que ocorre na China é uma política econômica tipicamente neoliberal (discordando apenas sobre a superioridade do liberalismo sobre a planificação).
Mas parece que estão todos no mundo da lua. Parecem que nunca perceberam o mínimo sequer sobre a história chinesa, ou sobre economia básica.
É um fato que a economia chinesa tem se aberto ao mercado por meio de reformas que tem sua consolidação na década de 1980. É nessa época que eles articulam as ZEE’s (Zonas Econômicas Especiais). Sem compreender esses períodos anteriores, não compreenderemos a China hoje.
O sistema de ZEE pressupunha a abertura ao capital estrangeiro em algumas zonas bem específicas, num contrato bem fechado com o Estado da China.
Isso tudo levava em conta que as empresas poderiam utilizar recursos (matéria prima e mão de obra) daquela zona, mas os produtos produzidos por essas empresas não poderiam ser vendidos na própria China, devia ser tudo destinado a exportação. O porquê? A China não permitiria que empresas de fora viessem a competir com suas empresas nacionais (sobretudo as estatais), porque as empresas nacionais ainda não tinham “musculatura” pra competir com grandes empresas estrangeiras.
Como a China iria adquirir essa “musculatura”? Além da existência na China de empresas estatais e privadas (isso é, empresas chinesas) e da existência de empresas estrangeiras nas ZEE’s, havia também um novo tipo de empresa: as mistas, joint-ventures, etc., que também só podiam atuar nestas zonas.
Como funcionava estas empresas mistas na década de 1980? Bem, eram empresas sino-estrangeiras, com contratos firmados geralmente de 25 anos. A parte estatal da sociedade entra com recursos e mão de obra, entre outros benefícios que poderiam atrair esse capital estrangeiro. A parte privada estrangeira entraria com investimentos, maquinário, segredos técnicos. Como já foi falado: essas mercadorias não deviam ser destinadas ao mercado chinês, mas sim exterior.
O que acontecia então ao se findar o contrato?
O acordo era muito claro. Os lucros finais da parte estrangeira ali adquirido poderiam ficar com os investidores, mas o maquinário geral, os segredos técnicos, e grande parte do investimento, se tornava propriedade da China, do Estado chinês. Assim o Estado atraía investimentos e adquiria segredos técnicos que poderiam ser revertidos no desenvolvimento das forças produtivas da própria China. Foi assim que a absurda maioria das empresas estatais chinesas se desenvolveu.
Desde a década de 1980 o Partido Comunista chinês falava que até poderiam avançar algumas aberturas de mercado para o capital estrangeiro, para além das ZEE’s (isso é, para outras províncias da China). Entretanto, eles temiam que as suas próprias empresas (as estatais, mas também as recém renascida burguesia nacional chinesa), pouco desenvolvidas sobretudo pela herança feudal e semicolonial, acabassem por colapsarem e serem engolidas numa competição desigual com tal capital estrangeiro. O que eles queriam? Eles queriam que estas empresas nacionais, como já falei, ganhassem “musculatura”, e só assim pudessem ter competitividade com empresas estrangeiras.
Findado a década de 80, em finais dos anos 90, eles acreditam que as estatais possuem capacidade para pautar certa competitividade contra as privadas estrangeiras. A partir daí, o governo chines permite que as mercadorias desse capital estrangeiro e das joint-ventures (mistas) circulem em seu país. Os chineses acreditam que suas empresas nacionais, e as suas estatais, podem vencer competições no âmbito do mercado nacional. E vencem!
Em cerca de poucas décadas (findando os anos 90), o país que estava, antes, mais atrasado que a própria Rússia no século XIX (sim, eu falei século 19!), passa a ter um desenvolvimento tecnológico próximo da Europa Ocidental dos anos 80.
Ainda, claro, há muita coisa por trás disso. Os contratos bem planejados das joint-ventures pelo Estado chinês, são só uma pequena parte da engenhosidade dos administradores chineses desta época. A planificação, nas indústrias pesadas, o planejamento macro-econômico no Banco Popular da China (banco central) e nas demais ramificações de bancos (estatais), além do trabalho legislativo dos parlamentares chineses. É todo esse conjunto, que tem como Estado, o maior orientador e coordenador da economia, é que garante toda essa desenvoltura, e o trilhar desse caminho, mesmo com a realização aberturas à economia de mercado (que foi feita paulatinamente).
Não foi o “deixar-passar, deixar-fazer” que realizou isso. Mas o planejamento. Não foi a economia de mercado que coordenou isso, mas uma administração planejada. Ainda que o Estado chinês tenha feito um amplo recuo na economia, que eles utilizam como analogia a “Grande Marcha” (liderada por Mao Tse-Tung, quando o Exército Popular recuou para não ser aniquilado), foi o Estado cumprindo seu papel de dirigente da economia, que domesticou essa economia de mercado à um plano de orientação.
Obviamente, tal como no passado a economia nacional chinesa ganhou musculatura para competir no mercado interno com as mercadorias estrangeiras, na atualidade, ela ganhou musculatura para competir no mercado internacional contra grandes empresas dos países capitalistas dito “avançados” (Estados Unidos, países da União Europeia, e entre outros).
Não é uma “loucura” ou um paradoxo, os chineses defenderem uma relação de “livre-comércio” a nível de países. Eles não estão defendendo isto porque defendem o “livre mercado” enquanto um princípio, eles estão fazendo isso porque sabem que possuem condições de vencerem no que concerne a competitividade contra diversas empresas dos Estados Unidos, Europa, etc., e nisto estão inclusas as suas estatais (e não só as joint-ventures, demais mistas, e privadas). O Estado chinês poderia batalhar, e sair razoavelmente bem, numa “batalha” contra diversas empresas e multinacionais.
Ora, a entidade do “Estado” (neste caso, um Estado autoproclamado socialista, concordemos ou não com essa definição), por meio de uma economia aberta ao mercado, mas que ainda é altamente orientada e planejada em sua espinha dorsal (por meio da indústria pesada, banco central, e outras empresas estatais de diversos setores), poderia vencer o “liberalismo”, no próprio campo de batalha que os liberais dizem ser deles! Onde? No livre-comércio entre as nações!
É preciso salientar que a China não disse isto numa transação comercial com um país “protecionista” do Terceiro Mundo que ainda está buscando desenvolver-se. A China falou isso em Davos! Ela falou isso perante inúmeros líderes políticos e comerciais num encontro feito sobretudo para estas lideranças dos países do “primeiro mundo”. Ironicamente, não é a Europa que está chegando num país do Terceiro Mundo, solicitando que o país abra as portas para os países europeus. É a China, solicitando que, sobretudo a Europa (em meio as suas conturbadas crises e problemas socioeconômicos), abram as portas para a China. A burguesia dos países dominantes, que pregam liberdade econômica ao Terceiro Mundo, mas pratica protecionismo no próprio país, se vê defronte um Chefe de Estado do Terceiro Mundo, pedindo para que eles abram as portas. Um nível paradoxal da contradição do capital: Trump quer “se voltar ao país”, britânicos exigem o Brexit, etc, enquanto a China quer um livre comércio entre os países!
Isto é a prova cabal da superioridade do planejamento, e da orientação do Estado na economia, e não o contrário.
O que reforça esta questão é que, nas ultimas 4 ou 5 décadas, enquanto os países capitalistas do mundo todo (os imperialistas ou dependentes) passaram por sucessivas crises e inúmeros problemas (desemprego, baixo crescimento ou não crescimento do PIB e na renda), a China crescia de maneira estável.
Em 2008, enquanto inúmeros países do mundo mergulhavam numa crise cíclica que afetava seu PIB, o desemprego, etc., a China mantinha uma taxa crescente do PIB entre 7% à 9% (ao ano) e o desemprego a menos de 4%.
Enquanto a Europa estava mergulhada no caos, em protestos massivos, greves gerais de proporções absurdas, e com uma economia em ruínas, a China segue com uma taxa de desemprego menor que 4%, com crescimento da renda per capta a 6%, e do PIB a mais de 7%.
Enquanto a economia mundial “explodia” (negativamente falando), a China seguia desde os anos 80, um crescimento estável e fixo, todos os anos, onde o PIB é duplicado de década em década (crescimento de aproximadamente 100% do PIB a cada 10 anos), onde o PIB quase sempre crescia a 9% ao ano, e só hoje, é que eles estão numa margem “ruim”, mas ainda estável de 7% ao ano.
Todas os países que deixam o mercado, o “liberalismo”, serem as relações dominantes de sua economia, entraram em grave colapso, o a própria economia brasileira tem começado a entrar nesse buraco. Mas ao mesmo tempo a China sobrevive a todas as crises, crescente e crescente. E aí, ha algo engraçado nas análises superficiais, tanto dos liberais, quanto da “esquerda”.
O engraçado da abordagem dos liberais é: eles não conseguem perceber que foi apenas por meio de coordenação e planejamento do Estado, que a China ganhou porte para competir de maneira forte no mercado internacional. Eles não conseguem perceber, que a China não é prova da “superioridade” do liberalismo, mas sim, justamente o contrário: de como ATÉ A ABERTURA à uma economia de mercado só pode ser útil se houver a “droga” de mecanismos de orientação, planejamento, e presença do Estado.
Já, o engraçado nas abordagens superficiais de integrantes da esquerda, é: se nós, marxistas, temos como princípio que toda sociedade e economia capitalista, passará e sofrerá inevitavelmente com as crises cíclicas do Capital e das contradições entre ‘forças produtivas VS relações de produção’. Como é que diabos a China consegue manter seu crescimento estável sem se deixar abalar ou colapsar com uma crise sequer em praticamente QUATRO DÉCADAS? Como é que diabos a China conseguiu manter “religiosamente” um crescimento de quase 100% do PIB por década, e de quase sempre 9% do PIB ao ano em cerca de QUARENTA ANOS SEGUIDOS?
Passamos por, no mínimo, 3 crises capitalistas no âmbito internacional desde que se iniciaram as reformas econômicas na China nos finais dos anos 70 e início dos anos 80. Em todas elas a China não teve problemas com desemprego (as taxas sempre foram baixas e bem controladas), não teve seu crescimento anual abalado (o máximo em que afetou foi ter reduzido o crescimento de 9% ao ano para 7% ano, nesta última crise internacional, estimativas mais pessimistas em 6%), e o Estado em momento nenhum colapsou (como chegou a ocorrer com a URSS).
Sabe um dos países (e períodos) em que conseguia manter uma taxa de aumento do “PIB” de maneira fortemente ascendente, semelhante a China, com taxas de 9% a 12% ao ano? A URSS sob a gestão de Stálin (em plena planificação).
Nenhum país, dominado por relações econômicas capitalistas, sob a égide de uma economia liberal, conseguiu os feitos econômicos da China.
Como explicar isso?
Bem, para começar, não devemos cair em simplismo. A presença do capitalismo na economia chinesa é inegável, entretanto, como explicar este “comportamento” e sucesso da economia chinesa, que nunca foi visto em nenhum país capitalista da história da humanidade, e que, pelo contrário, só foi visto em países socialistas ‘exemplares’, como a União Soviética sob gestão de Stálin? Bem, na espinha dorsal da economia chinesa, lá se encontra a resposta.
Se o Estado, o planejamento, e os setores mais determinantes da economia chinesa, conseguem controlar todos os problemas referentes à desemprego, impedir à anarquia de mercado, não se abalar por crises capitalistas internacionais, manter uma produtividade crescente e estável, absolver para o Estado chinês tecnologias e conhecimentos técnicos (de empresas estrangeiras) para suas estatais, sem que o Estado chinês colapse (como colapsou a URSS), algo me diz que ainda há alguma presença de socialismo e planificação (mesmo que ela coexista com uma economia de mercado e grandes aberturas ao capitalismo), e que, portanto, a luta em torno do avanço, ou não, das forças contrarrevolucionárias na China (sobretudo no seio do Estado e do Partido Comunista chinês), ainda é algo a ser considerado pelo movimento comunista internacional, e não é já algo “dado” (onde já “extingui-se todo socialismo chinês, e a China é mais capitalista que os Estados Unidos”), como creem muitos militantes da esquerda.
Obviamente, os problemas sociais, tas quais crimes de assalto, corrupção entre funcionários do Estado, drogas, etc., tiveram um relativo aumento quase que “natural” com as paulatinas aberturas ao capitalismo. É de se esperar. Mas isso é algo que o próprio PCCh assume, e não há nenhuma dissimulação por parte deles nisso (como havia dissimulação com Krushev na URSS). Costuma-se citar os problemas sociais semelhantes (mas, acredito que de menor proporção) que ascenderam na Rússia, na época da NEP, semelhante como ocorre na China devido as reformas. E os problemas mais econômicos (desempregos, anarquia de mercado, etc.), são “contornados” e resolvidos pela “parte macro-econômica” da infraestrutura chinesa, diretamente submetidos ao planejamento do Estado e orientação do partido. Problemas referentes a reivindicações de trabalhadores, ou abusos de empresários, surpreendentemente, são notificados nos próprios noticiários chineses, e denunciados por associações sindicais institucionais da própria China (essa também seria uma forma do Estado chinês dar bases a classe trabalhadora chinesa a pressionar que os empresários, sejam os chineses ou estrangeiros, cumpram a legislação trabalhista).
Perceba que eu não estou entrando nos méritos sobre o sucesso final e futuro dessas reformas aplicadas pelo Partido Comunista Chinês a partir de Zhou Enlai e Deng Xiaoping. Não estou dizendo que este é o rumo correto que a revolução chinesa deveria trilhar, e que essas “reformas temporárias de longo prazo” vão desencadear no futuro necessariamente o sucesso da construção de uma “economia plenamente planificada”, que vai necessariamente criar bases sólidas para o “comunismo ulterior”.
Na verdade, acredito ser bem possível que a burguesia chinesa que ascendeu a partir da década de 80, possa avançar em suas aspirações, tente tomar o poder (retirando o papel planejador e orientador do Estado chinês na economia), corroendo e aniquilando o Partido Comunista chinês. Isso e perfeitamente possível, e pode acontecer desde já: o que mostraria que as reformas iniciadas por Zhou e Deng pode ter tornado a burguesia chinesa indomesticável e dado plenas armas à ela para sua contrarrevolução.
O que no final das contas isso vai resultar? Sinceramente, não acredito que haja como se ter uma resposta plenamente segura para esta questão a curto prazo. Não hoje, não agora.
Mas apesar de tudo isto, é importante realizar análises sérias acerca da China e destas reformas. É importante perceber que o crescimento chinês e a sua política econômica não representa, por um lado, para os liberais “a prova da superioridade do liberalismo” e, nem, por outro lado, para a esquerda a prova de que a China é “apenas um país capitalista liberal, assim como qualquer outro”.
Países competem no mercado internacional, e inclusive países socialistas negociam seus produtos, também, no mercado internacional, mesmo os países socialistas ‘exemplos’ de planificação econômica. Mesmo os países que sejam internamente planificados, internacionalmente, precisam negociar com outros países, o que torna perfeitamente aceitável a ideia de um “livre comércio” entre as nações (em âmbito internacional), que dirá se estivermos falando da China, que absolvem várias táticas de mercado de economias capitalistas (e o fazem, assumidamente desde a década de 80).
E por último, só queria dizer que, os tipos de reforma implementados na China na década de 80, são muito semelhantes a reformas tocadas já há algum tempo nos países socialistas queridos entre a esquerda que costuma coadunar com propaganda anti-chinesa. Todos os países socialistas atuais, realizam e realizaram reformas semelhantes as perpetradas pela China há algum tempo, seja os que o fazem em uma menor escala (Coreia do Norte e Cuba), e os que fazem em maior proporção (Laos e Vietnã).
A própria Coreia do Norte possui algo semelhante com as ZEE’s chinesas dos anos 80, e possui legislação para empresas estrangeiras, a partir de reformas que começaram já com o presidente Kim Il-Sung (primeiro presidente da RPDC, idealizador da Ideia Juche), na década de 1990!
No final das contas, é como diz Shakespeare “há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”, e aqui, podemos dizer com muita segurança que há muito, muito mais, que precisamos estudar, antes de apontar o dedo à qualquer experiência de construção do socialismo mundo afora, seja lá quais afirmações fazemos. E nisso, inclusive, me incluo.
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