Conflito distributivo e o fim da “Breve Era de Ouro” da economia brasileira
- Camarada C.
- 28 de ago. de 2018
- 20 min de leitura
Atualizado: 11 de dez. de 2019

“Os capitalistas fazem muitas coisas como classe, mas certamente eles não investem como classe.”
Michal Kalecki (1977)
Introdução
O objetivo deste trabalho é discutir as causas principais da interrupção, a partir de 2015, do processo de crescimento com inclusão social que ocorreu na economia brasileira a partir de meados dos anos 2000, que chamaremos de “breve era de ouro” da economia brasileira em alusão ao processo semelhante, porém bem mais longo e intenso, que ocorreu nos países centrais depois da Segunda Guerra Mundial até o início da década de 1970. Nossa análise se baseia em duas hipóteses centrais. A primeira é de que, por uma série de razões estruturais, operando tanto no lado da oferta quanto da demanda de trabalho, esse processo gerou, a despeito das taxas de crescimento da economia não terem sido muito elevadas, uma “revolução indesejada” no mercado de trabalho brasileiro entre 2004 e 2014, que reforçou muito o poder de barganha dos trabalhadores (particularmente os menos qualificados). Essa “revolução indesejada” gerou uma tendência de os salários reais crescerem continuamente acima do crescimento da produtividade, o que acirrou progressivamente o conflito distributivo e reduziu as margens e taxas de lucros das empresas.
A nossa segunda hipótese, baseada em alguns aspectos econômicos e políticos das teorias de Garegnani, Steindl e Kalecki, é de que a interrupção do processo de crescimento socialmente inclusivo a partir de 2015 se deu como efeito do acirramento do conflito distributivo, mas de maneira indireta, pela pressão política exercida pela classe capitalista (e seus aliados) sobre o governo para mudar o regime de política econômica e criar condições para a resolução do conflito distributivo a favor do capital, e não por efeitos econômicos ou políticos atuando diretamente nas decisões de investimento das empresas. Sob a pressão da concorrência, mesmo com margens e taxas de lucro menores, o investimento privado não residencial seguiu de perto a evolução do crescimento dos componentes autônomos e induzidos da demanda final que não criam capacidade para o setor privado. Como as políticas de inclusão social e a redistribuição de renda expandem os componentes da demanda e o mercado interno, o efeito direto sobre o investimento da mudança na distribuição foi claramente expansionista durante todo o período. Apenas quando o governo não resiste mais às pressões e muda radicalmente o regime da política econômica em 2015, com o objetivo de resolver o conflito distributivo a favor do capital, é que vem a forte contração da demanda efetiva que, por sua vez, explica o posterior colapso do investimento das empresas privadas.
Este trabalho se divide em mais quatro seções. Na segunda seção discutimos a “revolução indesejada” que acabou ocorrendo no mercado de trabalho no Brasil. Em seguida, apresenta algumas considerações teóricas gerais sobre os efeitos de mudanças da parcela dos salários na renda sobre as taxas de lucro, o produto e o investimento das empresas. A quarta seção mostra como o crescimento foi liderado pela demanda durante todo o período e como o investimento das empresas foi induzido pela evolução da tendência da demanda efetiva agregada e avalia criticamente outras interpretações sobre a relação entre conflito distributivo e a dinâmica do investimento das empresas no Brasil. Por fim, na quinta seção argumentamos que, a despeito da retórica sobre a necessidade de um ajuste fiscal, a mudança radical regime de política econômica em 2015 foi resultado da tentativa do governo de resolver o conflito distributivo de forma favorável ao capital.
A “Revolução Indesejada” no mercado de trabalho: 2004–2014
Nossa hipótese central é que houve no Brasil uma “revolução indesejada” no mercado de trabalho no período entre 2004 e 2014, decorrente da queda acentuada da taxa de desemprego aberto e de outros elementos sociais e institucionais que aumentaram o poder de barganha dos trabalhadores muito mais do que se esperava. Essa mudança na situação do mercado de trabalho foi um resultado inesperado da interação de um amplo conjunto de fatores que se reforçaram mutuamente (Summa; Serrano, no prelo).
Um primeiro elemento foi o forte aumento do salário mínimo, que cresceu a uma taxa de cerca de 5% em termos reais entre 2000 e 2014 (Summa; Serrano, no prelo). No Brasil, o salário mínimo afeta direta e indiretamente tanto as condições gerais do mercado de trabalho quanto o poder de barganha dos trabalhadores em geral. Além disso, como muitos benefícios e transferências sociais (como a previdência social, seguro desemprego etc.) estiveram atrelados ao valor do salário mínimo, aumentos deste tiveram um forte efeito de redução de pobreza familiar e melhoria das condições de vida. Isso influencia marcadamente o poder de barganha dos trabalhadores mais pobres, assim como suas decisões sobre ofertar trabalho e níveis aceitáveis de salários e condições de trabalho. Houve também substancial aumento na cobertura do seguro desemprego e outras transferências sociais.
Os efeitos diretos levam ao aumento dos salários da mão de obra menos qualificada, através de diversos canais. Há um efeito positivo direto nos salários do setor público e no segmento formal do mercado de trabalho privado. Há também o “efeito farol” sobre os níveis de salário negociados no setor capitalista informal para trabalhadores urbanos e rurais e também sobre os salários do setor informal de serviços pessoais (como empregadas domésticas, por exemplo), para o qual o salário mínimo (ou frações dele) é uma norma social bem aceita e estabelecida (Medeiros, 2015).
Os efeitos indiretos operam através do aumento da renda média dos trabalhadores informais empregados por conta própria. Uma parte da maior renda de trabalhadores e beneficiários de transferências sociais que ocorre com o aumento do salário mínimo tende a aumentar a renda média dos trabalhadores autônomos do setor informal que vendem muitos dos seus bens e serviços para outros trabalhadores de baixa renda. Tomados em conjunto com os efeitos positivos de maiores salários e transferências sociais (cujos beneficiários também têm alta propensão a consumir) sobre o emprego no setor formal, o efeito indireto na renda média dos trabalhadores informais autônomos opera tanto através da maior massa de renda gasta na compra dos seus serviços quanto na redução do número relativo de trabalhadores nesse segmento, que ocorre quando o emprego formal se expande. Assim, salários mínimos mais altos aumentam substancialmente a renda média per capita desses trabalhadores informais.
No período, em geral os sindicatos também tiveram seu papel reforçado, com um substancial aumento no número de greves (não houve redução no grau de sindicalização, ao contrário das tendências internacionais mais recentes). O crescimento bem mais rápido da economia no período, combinado com algum reforço na aplicação das leis trabalhistas e incentivos maiores tanto para trabalhadores como para empresas (particularmente o acesso a crédito e tributação simplificada), levou a um forte crescimento dos empregos formais e a uma queda significativa na taxa de informalidade.
O efeito do crescimento da economia sobre a geração de empregos foi reforçado pela forte expansão relativa do setor de serviços, de baixa produtividade (e, portanto, alta intensidade de trabalho). Essa expansão acelerada dos serviços parece ter sido beneficiada pela tendência (internacional e doméstica) de baixos preços relativos de bens de consumo industriais e forte expansão de crédito ao consumidor. Esses fatores parecem ter aumentado consideravelmente a elasticidade da renda do setor de serviços, na medida em que o aumento do salário real permite a trabalhadores atenderem com mais facilidade suas demandas por bens de consumo industriais duráveis e não duráveis, em níveis de renda familiar relativamente baixa, e começarem a gastar parcela crescente dos salários em serviços, em um nível de renda bem menor do que em décadas passadas (Medeiros, 2015). Dado o padrão de crescimento da economia no período, os setores em que o emprego cresceu mais rápido foram a construção civil, os serviços, o comércio e a administração pública, todos muito intensivos em trabalho (Ami-trano, 2013). O efeito combinado desses elementos foi de que mesmo taxas médias de crescimento do produto relativamente moderadas levaram a um forte crescimento do emprego formal.
Ao mesmo tempo, no que diz respeito ao lado da oferta de mão de obra, tendências resultantes da transição demográfica reduziram substancialmente a taxa de crescimento da população em idade ativa. Além disso, as políticas sociais de redução de pobreza, seguridade social e de universalização da educação tiveram o efeito combinado de reduzir a taxa de participação (com forte redução no trabalho infantil, por exemplo). O resultado foi que a força de trabalho, que crescia ainda em média de 3% ao ano entre 2001 e 2005, passa a crescer a uma taxa média de apenas 1,2% no período entre 2006 e 2014 (Summa; Serrano, no prelo). Além disso, os salários mais baixos cresceram a um ritmo muito mais elevado do que o salário médio, reduzindo substancialmente a desigualdade salarial. Com o forte ritmo de crescimento do emprego e a desaceleração do crescimento da oferta de mão de obra, a taxa de desemprego aberto caiu continuamente de 2003 a 2014. Isso fortaleceu ainda mais o poder de barganha dos trabalhadores e levou a um crescimento médio dos salários reais de mais de 3% ao ano a partir de 2006, num contexto de baixo crescimento da produtividade (Summa; Serrano, no prelo). O aumento dos salários reais levou à gradual recuperação da parcela dos salários na renda, que continuou aumentando até 2015. Saramago, Medeiros e Freitas (2018) estimam que a participação salarial aumentou em média 1,2 ponto percentual por ano no período 2005–2015.
Relações diretas (econômicas) e indiretas (políticas) entre investimento, demanda e parcela dos lucros
Aumentos dos salários reais acima do crescimento da produtividade e, portanto, da parcela dos salários na renda tendem a reduzir as margens de lucros das empresas. Essa redução também diminui as taxas de lucro realizadas sobre o estoque de capital fixo que já está instalado na economia, embora no contexto de curto prazo o efeito negativo seja atenuado, ao menos para a economia como um todo, pelo fato de que o aumento da parcela dos salários na renda tende a expandir o consumo (pois significa uma transferência de renda para uma classe que tem uma propensão marginal a consumir substancialmente mais elevada do que a dos proprietários do capital) e a demanda agregada e o produto, aumentando o grau de utilização efetivo desse estoque de capital inicial (Serrano, 1988, apêndice A).
De acordo com Garegnani (1992; 2015) e alguns outros autores associados à retomada da abordagem clássica do excedente iniciada por Piero Sraffa (Serrano, 2004; Cesaratto, 2015), o efeito negativo de uma redução persistente das margens de lucros sobre as taxas de lucro esperadas em novos investimentos não pode ser atenuado pela expansão da demanda como no caso do capital já instalado, pois o eventual aumento do grau efetivo de utilização da capacidade é por sua própria natureza temporário, uma vez que a concorrência impõe que o volume de novos investimentos das empresas tentem adequar o tamanho do estoque de capital aos níveis persistentes de demanda esperada (setorial e agregada) (Garrido Moreira; Serrano, 2018; Serrano, 1995; Serrano; Freitas, 2017). Isso ocorre porque, de um lado, nenhuma empresa vai querer investir de forma a instalar de propósito um estoque de capital superdimensionado em relação à demanda esperada. Por outro lado, a concorrência real ou potencial de outras empresas em geral também impede que as empresas subdimensionem persistentemente, de propósito, o tamanho de seu estoque de capital em relação à demanda, sob o risco de perder parcelas de mercado para rivais já presentes naquele setor e/ou novos entrantes. Assim, a concorrência leva as empresas a investir de forma a tentar fazer o grau de utilização efetivo da capacidade tender ao grau de utilização normal ou planejado (aquele que minimiza os custos, já levando em conta as margens necessárias de capacidade ociosa planejada).
Por esses motivos, a taxa de lucro esperada em novos investimentos vai ser a chamada taxa de lucro normal, obtida pelo grau de utilização normal ou planejado do estoque de capital. A redução de margem de lucro que vem com o aumento de salários reais acima do crescimento da produtividade reduz diretamente a taxa de lucro que pode ser obtida no grau de utilização normal e, portanto, reduz diretamente a taxa geral de lucro que se espera nos novos investimentos, independente de qual tenha sido o efeito expansionista desses maiores salários reais sobre os níveis de demanda e do produto.
O fato de que o efeito de longo prazo de um aumento da parcela dos salários na renda leve a uma queda na taxa de lucro normal e, portanto, na rentabilidade esperada dos novos investimentos não significa, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, que os níveis de investimento também vão ser reduzidos por essa mudança na distribuição funcional da renda.
Pelo contrário, nesse caso, a concorrência entre as empresas levará a um aumento do nível de investimento para adequar o tamanho do estoque de capital aos níveis mais altos de demanda agregada que viveram do aumento do consumo dos trabalhadores descrito acima.
Nessa visão, a rentabilidade (margem de lucro ou taxa de lucro em grau de utilização normal) é uma restrição, e não um determinante do investimento. Se a rentabilidade esperada se mantém acima de um mínimo dado pela taxa de juros mais um componente de risco de referência, variações das margens brutas ou líquidas de lucro não afetam diretamente o montante de investimento das empresas.
Desses princípios teóricos gerais seguem-se duas implicações adicionais que vale a pena mencionar aqui. A primeira é que, assim como a redução da rentabilidade em si não reduz o investimento, políticas de estímulo direto ao investimento que geram aumento de margens de lucro, através de desonerações tributárias e redução do custo do investimento (como a redução da taxa de juros), ou desvalorizações cambiais que permitem a sustentação de margens de lucros mais altas aos produtores internos em setores expostos à concorrência externa em geral não têm, por si só, impacto positivo persistente sobre o investimento, pois, se não vêm junto com alguma perspectiva de expansão da demanda, não tornam necessária a expansão da capacidade produtiva das empresas. E na extensão em que algumas empresas por acaso de fato ampliarem seus investimentos apenas porque sua rentabilidade esperada aumentou, sem alteração das perspectivas de aumento da demanda por seus produtos, o efeito será a criação de uma grande e custosa capacidade ociosa indesejada que certamente reduzirá a rentabilidade realizada dessas empresas e provavelmente levará rapidamente a uma posterior contração do investimento.
Uma segunda implicação desses princípios teóricos básicos é relativizar o papel da oferta de crédito na determinação do investimento. Dado que investimento gera capacidade produtiva, os próprios montantes de crédito oferecidos ou tomados para financiar os investimentos não podem ser totalmente independentes das expectativas de demanda. Em geral, o montante de investimento vai depender de qual das expectativas de demanda futura for a mais curta: a da empresa ou do banco que financia o projeto. É claro que numa crise financeira de curto prazo, o investimento agregado é afetado por condições financeiras em geral. Por exemplo, é altamente improvável que empresas que estão temerosas de ir à falência em breve não adiem seus planos de expansão. No entanto, mesmo esses efeitos são bastante assimétricos, pois a mera disponibilidade maior de crédito para o investimento não cria por si só mais perspectivas de demanda efetiva e, portanto, não justifica a ampliação da capacidade. Finalmente, é importante enfatizar que as empresas são muito heterogêneas no que diz respeito a restrições financeiras: pequenas empresas em geral têm fortes restrições de crédito ao investimento. Porém, para grandes empresas (e especialmente as empresas multinacionais) em geral a restrição de demanda rentável vem bem antes dos seus limites de financiamento. Dessa forma, diante de perspectivas de expansão de demanda, é improvável que as oportunidades de investimento que as pequenas empresas estão impedidas de fazer por falta de crédito não sejam aproveitadas por empresas maiores. Assim, fora no curtíssimo prazo em situações de crise, o papel de restrições de crédito parece bem mais importante para definir a evolução da distribuição do tamanho das empresas e particularmente quem investe (e em que setores) do que quanto se investe no agregado (Serrano, 2001).
O fato de a redução da rentabilidade esperada (taxa de lucro normal) não afetar diretamente o investimento privado que cria capacidade produtiva não significa que os empresários não fiquem bastante insatisfeitos com uma queda nas taxas de lucros esperadas e realizadas nos seus investimentos, causadas por aumentos do salário real acima do crescimento da produtividade. Significa apenas que, parafraseando Kalecki, “os capitalistas não investem como classe”, e qualquer capitalista individual que se recuse a investir porque a taxa de lucro esperada caiu estará apenas abrindo mão de melhores oportunidades de valorização do seu capital realmente disponíveis e ainda estará deixando parcelas de mercado para seus rivais. Nesse contexto, a melhor alternativa realmente disponível para as empresas capitalistas é continuar investindo no montante em que a demanda se expande. Ao mesmo tempo, seus proprietários podem se organizar “como classe” para tentar convencer o Estado a adotar políticas econômicas que ajudem a compensar ou reverter a mudança distributiva indesejável. E o grau de sucesso ou não dessas iniciativas depende de fatores estritamente políticos, e não econômicos.
Essas últimas considerações nos remetem à contribuição de Kalecki (1943), que em seu conhecido artigo sobre os aspectos políticos do pleno emprego anteviu que políticas econômicas que reduzissem muito o desemprego e fortalecessem o poder de barganha dos trabalhadores poderiam ser revertidas por causa da crescente oposição das classes proprietárias, que poderiam acabar convencendo o governo a mudar o regime de política econômica.
Note que, de acordo com Kalecki, a oposição também não se daria diretamente através de uma redução de investimentos das empresas, e sim posteriormente como efeito da mudança para políticas de austeridade. Essas políticas desacelerariam o crescimento da demanda efetiva e reduziriam o grau de utilização da capacidade e os investimentos das empresas.
Streeck (2011), no entanto, tem uma leitura bem diferente do ar-tigo de Kalecki. Segundo o autor, Kalecki diz que haveria uma reação econômica direta dos empresários contra as políticas econômicas progressistas, através de uma “greve de investimento”, que levaria a economia diretamente a uma recessão. Streeck inclusive chama essa redução direta do investimento por motivos puramente políticos de “reação kaleckiana”.
Em nossa opinião, essa noção de “greve de investimentos” de forma alguma representa o que Kalecki tenta dizer em seu artigo seminal. Kalecki deixa muito claro em todo o artigo que o investimento cai apenas quando a economia desacelera como efeito de mudança da política econômica.
De qualquer forma, a noção de greve de investimento é altamente implausível, pois requer suspensão total coordenada da concorrência intercapitalista, um acordo entre todas as empresas, que abrem mão de oportunidades lucrativas de investimento em nome da política e confiam que as demais empresas farão o mesmo.
Numa linha bem mais próxima a Kalecki, Josef Steindl, seu principal seguidor, interpretou o fim de era de ouro dos países centrais da seguinte forma:
[...] as pressões internas de grupos em luta pela participação na renda nacional mostraram-se inflacionárias; em lugar de se aplacar as massas com um aumento progressivo do padrão de vida, o objetivo passou a ser amedrontá-las com o desemprego, que atinge com maior violência aqueles que são considerados mais rebeldes. Os argumentos contrários ao pleno emprego prevaleceram nas reuniões entre as potências e, com isso, presenciamos a estagnação não como uma ocorrência incompreensível, como na década de 30, mas a estagnação como política. [Steindl, 1976, p. 10]
A análise que Garegnani e alguns dos seus seguidores (Cavalieri; Garegnani; Lucii, 2008) fazem do final da era de ouro das economias avançadas nos pós-guerra também é bem próxima à de Steindl. Nessa visão, o acirramento do conflito distributivo ao final dos anos 1960 levou a um aumento da parcela dos salários na renda e a uma redução da taxa de lucro esperada e realizada. Mas o investimento das empresas, em vez de se reduzir, inicialmente aumentou com o efeito positivo dos aumentos salariais sobre a demanda. Os repasses parciais dos aumentos salariais levaram à aceleração da inflação (bem antes dos choques do petróleo) e gradualmente foi se solidificando a reação política que eventualmente levou à mudança do regime de política econômica na direção de políticas de austeridade e controle da inflação, com o abandono das prioridades de crescimento acelerado e “pleno emprego” que haviam sido seguidas por mais de duas décadas, com o objetivo de gerar desemprego o suficiente para combater a inflação salarial e permitir a resolução do conflito distributivo de forma favorável ao capital. Somente depois da adoção dessas políticas econômicas contracionistas é que o crescimento da demanda foi reduzido, o que acabou induzindo a desaceleração do investimento das empresas (Serrano, 2004).
Crescimento liderado pela demanda e investimento induzido: 2004–2014
Alguns estudos econométricos recentes apresentam evidências favoráveis à visão de que o investimento das empresas é guiado basicamente pelo princípio de ajuste do estoque de capital, resultante da pressão competitiva para ajustar a capacidade produtiva à expansão da demanda e muito pouco ou nada afetado sistematicamente por variações de custo de capital ou rentabilidade. O estudo de Santos et al. (2016) encontra uma elevada elasticidade dos níveis de investimento em relação ao produto. Em particular, Avancini, Freitas e Braga (2015) e Braga (2018) confirmam que a taxa de investimento (em máquinas e equipamentos) se ajusta gradualmente à taxa de crescimento da economia, de acordo com o mecanismo de ajuste do estoque de capital. Evidências de que o investimento em máquinas e equipamentos de cada setor também é induzido pela demanda se encontram em Miguez (2016).
A experiência de crescimento com inclusão social que chamamos aqui de “breve era de ouro” da economia brasileira pode ser dividida em duas fases. Uma primeira, no período 2004–2010, na qual a rápida expansão dos gastos que não criaram capacidade para o setor privado foi puxada pelo governo (e em escala menor pelas exportações), que, de maneira inicialmente hesitante, chamou para si progressivamente a responsabilidade de estimular diretamente a demanda agregada diante de um cenário externo particularmente favorável (Serrano; Summa, 2012a; Santos, 2013). Esses estímulos incluíram aumentos substanciais dos gastos públicos e transferências sociais, redução dos juros e estímulos ao crédito para o consumo e construção civil e a política de valorização do salário mínimo.
Nesse primeiro período, cabe notar, o investimento em máquinas e equipamentos (privado e das empresas estatais) cresceu a taxas médias anuais bem mais altas (12,3%) que o PIB (4,5%), o que confirma o efeito acelerador sobre a taxa de investimento induzido de maiores taxas de crescimento da demanda agregada.
O segundo período, de 2011 a 2014, marca o início da desaceleração do crescimento da demanda efetiva na economia brasileira, no qual há uma mudança na orientação da política econômica, enquanto o governo abandona a direção anterior de estimular diretamente a demanda agregada doméstica e a expansão do mercado interno (num contexto em que as exportações já estavam desacelerando) e passa prioritariamente a fazer políticas para tentar incentivar o investimento privado e as exportações. Essas medidas começam com o ajuste fiscal “rudimentar”, com contenção do investimento público (descrito em Serrano e Summa, 2012b e 2015), subida da taxa de juros (posteriormente revertida e depois retomada) e políticas macroprudenciais de contenção de crédito, que deveriam controlar um suposto superaquecimento inicial da economia para que depois se abrisse espaço para a expansão do investimento e exportações através da desvalorização cambial e redução de algumas tarifas públicas, desoneração fiscal para aumentar a margem de lucros das empresas e estímulos a concessões privadas de serviços públicos e parcerias público-privadas para o investimento em infraestrutura.
Como resultado dessa mudança na direção da política econômica, num contexto de menor expansão da economia mundial, o crescimento médio anual do PIB se desacelera significativamente (2,1%) e o do investimento em máquinas e equipamentos (tanto no setor privado quanto em empresas estatais) previsivelmente cai muito mais e tem taxa de crescimento negativa (de –0,7% ao ano) no período como um todo.
É importante assinalar que, como vimos anteriormente, a parcela salarial foi crescendo ao longo de todo o período da “breve era de ouro”, enquanto a taxa de investimento inicialmente aumentou e depois se reduziu, acompanhando a taxa de crescimento da demanda.
Esses dados sobre o investimento vão totalmente de encontro à tese defendida por Shaikh (2017), que considera o que chamamos “breve era de ouro” no Brasil terminou porque, numa economia capitalista, a não ser em condições excepcionais, toda vez que os salários reais aumentarem mais do que a produtividade, o investimento privado se reduz.
Outra interpretação sobre um suposto efeito direto negativo da parcela dos lucros sobre a taxa realizada de lucros e o investimento foi apresentada por Marquetti, Hoff e Miebach (2016). Com clareza, já no resumo do artigo dizem:
O declínio da lucratividade quebrou a coalizão de classes constituída no governo Lula. A presidente Dilma Rousseff adotou uma serie de estímulos fiscais e incentivos creditícios para a acumulação de capital em um período de redução da taxa de lucro. O setor privado restringiu seus investimentos e a taxa de crescimento caiu substancialmente.
A evidência empírica não parece favorecer essa interpretação. Usando os próprios indicadores dos autores (Marquetti; Hoff; Mie-bach, 2016, p. 14, fig. 3), a taxa de lucro realizada cai desde 2006, e a taxa de acumulação só cai cinco anos depois (a partir de 2011). Além disso, entre 2014 e 2015 a taxa de lucro realizada aumenta e a taxa de acumulação continua em queda.
Outro estudo que argumenta que houve uma compressão de lucros no Brasil e que isso teve efeitos negativos diretos sobre o investimento é o de Martins e Rugitsky (2018). Mais uma vez, o problema empírico com o argumento dos autores é que estes não explicam como e por que o investimento das empresas cresceu durante muitos anos nos quais a parcela dos lucros (de acordo com as estimativas dos próprios autores) já estava sendo reduzida (Carvalho; Rugitsky, 2015).
Muitos autores autodenominados novo-desenvolvimentistas também supõem que o investimento na economia brasileira é “liderado pelos lucros”, isto é, se reduzem quando a parcela salarial aumenta e a taxa de lucros (normal e realizada) se reduz (Bresser-Pereira, 2015). Para os novo-desenvolvimentistas, como se sabe, a questão central é a taxa de câmbio. Um longo período de valorização da taxa de câmbio real reduziria a rentabilidade dos investimentos nos setores produtores de bens comercializáveis (se supomos que nesses setores os preços internacionais são tomados como dados), e isso explicaria a desaceleração do investimento privado. Em termos empíricos, o problema com essa visão é que a taxa de investimento aumentou no período de valorização cambial e se reduziu no período em que a taxa real de câmbio voltou a se desvalorizar.
No entanto, como vimos antes, em termos teóricos, não há bons motivos para se esperar que o investimento seja uma função direta do nível da parcela de lucros ou da taxa de lucros normal. O reconhecido fracasso da política de incentivos diretos ao investimento via desoneração fiscal, juros mais baixos e desvalorização cambial parece confirmar amplamente isso no caso do Brasil recente.
Finalmente, temos as interpretações baseadas na ideia de que a desaceleração do investimento foi resultado direto da oposição política ao governo (Carneiro, 2018). Nessa linha, Singer considera que o que ele chama de “ensaio desenvolvimentista” (Medeiros, 2017) da presidente Dilma enfrentou uma reação política contrária muito forte, que teria culminado em uma “greve de investimentos” (Singer, 2015). Essa tese é baseada inteiramente no argumento de Streeck (2011) sobre Kalecki, discutido e criticado anteriormente, e a nosso ver só teria relevância numa situação de extrema instabilidade política e econômica. E, se as condições de rentabilidade tivessem ficado tão precárias a ponto de levar a tal colapso do investimento privado, provavelmente teríamos observado também lockouts generalizados e colapso da produção. A desaceleração do investimento das empresas que ocorreu no Brasil certamente não refletiu uma situação de instabilidade tão extrema, além de ter sido plenamente justificada pelo menor crescimento da demanda agregada.
A “política da estagnação”
Ao logo do período 2004–2014 o empresariado foi deixando cada vez mais clara sua crescente insatisfação com os efeitos distributivos da “revolução indesejada” no mercado de trabalho descrita acima e com o consequente descontrole crescente relativo do aumento dos salários, descrito eufemisticamente como a “inflação de serviços”, com a suposta situação de “pleno emprego” e com a perda de “competitividade externa” das empresas e de suas margens de lucro, particularmente no setor industrial. A despeito da série de incentivos e desonerações fiscais pontuais depois de 2011, destinada a aumentar margens de lucro, o contínuo aumento dos salários reais acima do crescimento da produtividade, mesmo com a economia desacelerando, gerou cada vez mais desconforto nos meios empresariais e constrangimentos crescentes ao governo de um partido que tinha um genuíno e louvável compromisso com a inclusão social, mas ao mesmo tempo era gene-ticamente avesso a confrontação com a classe proprietária (Serrano; Melin, 2016; Teixeira; Dweck; Chernavsky, 2018).
Como vimos, a tendência de queda de rentabilidade não teve efeitos diretos negativos sobre o investimento das empresas. Também não parece haver evidências de uma reação direta da insatisfação política dos empresários cortando seus investimentos. A desaceleração do crescimento do investimento das empresas parece ter sido causada pela redução do crescimento da demanda agregada. A forte redução do investimento privado só vem depois que a política econômica muda e a demanda agregada se reduz. Como o crescimento da demanda, que já vinha se reduzindo desde 2011, chega a praticamente zero em 2014, o que em princípio deveria ter conduzido a políticas expansionistas e não contracionistas em 2015. No entanto, o efeito do conflito distributivo crescente foi o de gradualmente gerar consenso político sobre a necessidade de uma mudança na política econômica na direção oposta, de reduzir mais drasticamente o crescimento da demanda agregada e controlar o crescimento dos salários reais, gerando desemprego para enfraquecer o poder de barganha dos trabalhadores.
Em 2015 termina a “breve era de ouro” da economia brasileira, com a “contração geral contracionista”, na qual o governo Dilma se esforça com todos os seus instrumentos para contrair rapidamente a demanda agregada (Serrano; Melin, 2016). As consequências são uma forte queda do PIB em 2015 (–3,9%) e o colapso do investimento em máquinas e equipamentos estatal e privado (–26%). O governo que assume depois do golpe parlamentar em 2016 aprofunda esse mesmo tipo de política econômica, obtendo os mesmos resultados (previsíveis) de queda do produto e da taxa de investimento.
A forte guinada do regime de política econômica em 2015 para políticas de austeridade foi justificada pelo governo por uma suposta necessidade imperiosa de fazer ajuste fiscal para cuidar da relação dívida pública bruta/PIB e satisfazer as agências internacionais de rating de crédito, que se reduzissem nossas notas levariam a um aumento substancial no spread de risco-país e a uma forte crise cambial. Tal interpretação, inventada por economistas do próprio governo Dilma para racionalizar por que se decidiu fazer o exato oposto do que foi prometido durante a campanha eleitoral, não tinha fundamento na realidade. No caso do Brasil, a nota de rating das agências tinha, como tendência, seguido e não liderado a evolução do spread de risco-país. E este último, como reflete a percepção do risco de o país (e não o governo) interromper seus pagamentos em moeda estrangeira (e não doméstica), depende basicamente de fatores internacionais e da situação geral da balança de pagamentos do país (e não da dívida pública denominada na moeda nacional). O risco não depende e não tem nenhuma relação causal sistemática com indicadores fiscais do Brasil. Além disso, é importante lembrar que as agências de rating estão longe de ser monopolistas dos fluxos de capital externo para o país, além de terem admitido que a situação das contas externas do país à época estava tranquila, com estoques confortáveis de reservas internacionais (sobre esse tema ver Serrano e Pimentel, 2017).
Porém, na verdade, o objetivo da mudança da política econômica foi gerar desemprego suficiente para parar o crescimento do salário real e criar um clima favorável ao início de reformas que reduzem direitos sociais e trabalhistas de forma a reduzir permanentemente o poder de barganha dos trabalhadores. Nesse sentido, a política econômica tem sido muito bem-sucedida apesar da instabilidade gerada pela mudança de governo ocorrida em 2016.
Cremos, assim, que a guinada neoliberal na política econômica em 2015 teve outras razões, mais ligadas às consequências da “revolução indesejada” no mercado de trabalho, descrita na segunda seção. Ou seja, parece que ocorreu na “breve era de ouro” brasileira algo em parte similar ao ocorrido ao final da longa era de ouro dos países centrais: uma reação política ao acirramento do conflito distributivo, que acabou levando à adoção de políticas de austeridade. No caso específico do Brasil recente, o acirramento do conflito nos parece ter sido causado pela “revolução indesejada” no mercado de trabalho. Além disso, houve a diferença de que os capitalistas daqui contaram com o apoio dos assalariados de maior renda, revoltados com a redução da desigualdade salarial e o custo crescente do trabalho nos serviços domésticos.
Como vimos, uma das coisas que os capitalistas “não fazem como classe” é reduzir investimentos se suas margens e taxas de lucro se reduzem por conta do aumento dos salários reais. Mas uma das coisas que certamente fazem como classe é pressionar politicamente o governo para paralisar e, se possível, reverter políticas econômicas progressistas que geram efeitos distributivos e sociais indesejados (ver Serrano e Melin, 2016 e Calixtre e Fagnani, 2018).
Comments