Darcy Ribeiro e o povo brasileiro - Parte I
- Léo Camargo
- 1 de fev. de 2020
- 6 min de leitura
Atualizado: 8 de fev. de 2020
O grande Darcy Ribeiro ao descobrir que foi diagnosticado com câncer, em 1995, correu para colocar em prática sua obra-prima, o livro O Povo Brasileiro, que foi o resultado de quarenta anos de estudos debruçados em mais de 300 livros. Obcecado por descobrir uma "teoria do povo brasileiro", Darcy se tornou a maior referência sobre o Brasil e o brasileiro, batendo de frente contra concepções deplorativas sobre nosso povo.
Para conhecer sobre este grande pensador brasileiro o Jornal A Pátria vai publicar uma síntese do pensamento Darcyniano extraído de trechos de obras do próprio Darcy.

AS DORES DO PARTO
O Brasil foi regido primeiro como uma feitoria escravista, exoticamente tropical, habitada por índios nativos e negros importados. Depois, como um consulado, em que um povo sublusitano, mestiçado de sangues afros e índios, vivia o destino de um proletariado externo dentro de uma possessão estrangeira. Os interesses e as aspirações do seu povo jamais foram levados em conta, porque só se tinha atenção e zelo no atendimento dos requisitos
de prosperidade da feitoria exportadora. O que se estimulava era o aliciamento de mais índios trazidos dos matos ou a importação de mais negros trazidos da África, para aumentar a força de trabalho, que era a fonte de produção dos lucros da metrópole. Nunca houve aqui um conceito de povo, englobando todos os trabalhadores e atribuindo‐lhes direitos. Nem
mesmo o direito elementar de trabalhar para nutrir‐se, vestir‐se e morar.
Essa primazia do lucro sobre a necessidade gera um sistema econômico acionado por um ritmo acelerado de produção do que o mercado externo dela exigia, com base numa força de trabalho afundada no atraso, famélica, porque nenhuma atenção se dava à produção e reprodução das suas condições de existência.
Em conseqüência, coexistiram sempre uma prosperidade empresarial, que às vezes chegava a ser a maior do mundo, e uma penúria generalizada da população local. A sociedade era, de fato, um mero conglomerado de gentes multiétnicas, oriundas da Europa, da África ou nativos daqui mesmo, ativadas pela mais intensa mestiçagem, pelo genocídio mais brutal na
dizimação dos povos tribais e pelo etnocídio radical na descaracterização cultural dos contingentes indígenas e africanos.
Alcançam‐se, assim, paradoxalmente, condições ideais para a transfiguração étnica pela desindianização forçada dos índios e pela desafricanização do negro, que, despojados de sua identidade, se vêem condenados a inventar uma nova etnicidade englobadora de todos eles. Assim é que se foi fundindo uma crescente massa humana que perdera a cara: eram ex‐índios desindianizados, e sobretudo mestiços, mulheres negras e índias, muitíssimas, com uns pouquíssimos brancos europeus que
nelas se multiplicaram prodigiosamente.
O núcleo luso, formado por muito poucos portugueses que aqui entraram no primeiro século, e por mulheres mais raras ainda, que aqui vieram ter, olhando a todos os mais desde a altura do seu preconceito de reinóis, da força das suas armas, operacionava sua espoliação econômica, querendo impor a todos sua fôrma étnica e sua cara civilizatória. Ocorre,
surpreendentemente, que esse povo nascente, em lugar de uma Lusitânia de ultramar, se configura como um povo em si, que luta desde então para tomar consciência de si mesmo e realizar suas potencialidades.
Essa massa de mulatos e caboclos, lusitanizados pela língua portuguesa que falavam, pela visão do mundo, foram plasmando a etnia brasileira e promovendo, simultaneamente, sua integração, na forma de um Estado‐Nação. Estava já maduro quando recebe grandes contingentes de imigrantes europeus e japoneses, o que possibilitou ir assimilando todos eles na condição de brasileiros genéricos.
Alguns, sobretudo japoneses, guardando marcas físicas indisfarçáveis de suas origens, têm, em conseqüência, certa resistência à plena assimilação ou ao reconhecimento dela quando já está plenamente cumprida. Não deixam nunca de ser nisseis, porque trazem isso na cara. Outros imigrantes, como os italianos, os alemães, os espanhóis, apesar de brancarrões e de
portarem nomes enrolados, foram mais facilmente assimilados, sendo sua condição de brasileiros plenamente aceita. Alguns até exacerbam, como o caso do general Geisel, brasileiro de primeira geração, que nunca entendeu por que os índios, aqui há tantos séculos, teimam em não ser brasileiros.
Os árabes são os imigrantes mais exitosos, integrando‐se rapidamente na vida brasileira, participando das instituições políticas e alcançando posições de governo. Até esquecem de onde vieram e de sua vida miserável em seus países de origem. Cegos para o fato de que seu êxito se explica, em grande parte, pelo desgarramento que faz com que eles vejam e atuem sobre a sociedade local armados de preconceitos e incapazes de qualquer solidariedade, desligados de qualquer lealdade, de obrigações familiares e sociais, para só se concentrarem no esforço de enricar.
A atitude desses imigrantes é freqüentemente de desprezo e incompreensão. Sua tendência é considerar que os brasileiros pobres são responsáveis por sua pobreza e de que o fator racial é que afunda na miséria os descendentes dos índios e dos negros.
Afirmam até que a religião católica e a língua portuguesa contribuíram para o subdesenvolvimento brasileiro. Ignoram que aqui chegaram a partir de crises que os tornaram excedentes, descartáveis, da mão‐de‐obra de suas pátrias, e que aqui encontraram um imenso país já aberto, de fronteiras fixadas, regendo autonomamente seu destino.
Afortunadamente nenhum desses contingentes tem consistência suficiente para se apresentar como uma etnia disputante ao domínio da sociedade global, ou pretendentes a uma autonomia de destino.
Ao contrário do que sucede com outros países, que guardam dentro do seu corpo contingentes claramente opostos à identificação com a macroetnia nacional, no Brasil, apesar da multiplicidade de origens raciais e étnicas da população, não se encontram tais contingentes esquivos e separatistas dispostos a se organizar em quistos.
O que desgarra e separa os brasileiros em componentes opostos é a estratificação de classes. Mas é ela que, do lado de baixo, unifica e articula, como brasileiros, as imensas massas predominantemente escuras, muito mais solidariamente cimentadas como tal, que enquanto negro retinto ou branco de cal, porque nenhum desses defeitos é insanável. O porta‐voz mais brilhante dessa visão deformada de certos descendentes de imigrantes foi o
sábio Hermann von Ihering. Na sua paixão por defender seus conterrâneos alemães, que estavam em guerra contra os índios que viveram desde sempre nos terntórios doados para colonizar, emprestou seu prestígio científico para duas campanhas. A de pedir ao governo o extermínio dos índios como requisito do progresso e da civilização, e a de acusar a gente
brasileira, que tinha feito esse país que o abrigava, como incapaz de qualquer empreendimento:
"Os actuaes índios do Estado de S. Paulo não representam um elemento de
trabalho e de progresso. Como tambem nos outros Estados do Brazil, não se
póde esperar trabalho sério e continuado dos índios civilizados e como os
Caingangs selvagens são um impecilio para a colonização das regiões do
sertão que habitam, parece que não ha outro meio, de que se possa lançar
mão, senão o seu exterminio.
A conversão dos indios não tem dado resultado satisfactorio; aquelles indios
que se uniram aos portuguezes immigrados, só deixaram uma influencia
malefica nos habitos da população rural. É minha convicção de que é devido
essencialmente a essas circunstâncias, que o Estado de S. Paulo é obrigado a
introduzir milhares de immigrantes, pois que não se póde contar, de modo
efficaz e seguro, com os serviços dessa população indigena, para os trabalhos
que a lavoura exige (Ihering 1907:215)."
Outros intérpretes de nossas características nacionais vêem os mais variados defeitos e qualidades aos quais atribuem valor causal. Um exemplo nos basta. Para Sérgio Buarque de Holanda seriam características nossas, herdadas dos iberos, a sobranceria hispânica, o desleixo e a plasticidade lusitanas, bem como o espírito aventureiro e o apreço à lealdade de uns e outros e, ainda, seu gosto maior pelo ócio do que pelo negócio. Da mistura de todos esses ingredientes, resultaria uma certa frouxidão e anarquismo, a falta de coesão, a desordem, a indisciplina e a indolência. Mas derivariam delas, também, certo pendor para o mandonismo, para o autoritarismo e para a tirania.
Como quase tudo isso são defeitos, devemos convir que somos um caso feio, tamanhas seriam as carências de que padecemos. Seria assim? Temo muito que não. Muito pior para nós teria sido, talvez, e Sérgio o reconhece, o contrário de nossos defeitos, tais como, o servilismo, a humildade, a rigidez, o espírito de ordem, o sentido de dever, o gosto pela rotina, a gravidade, a sisudez. Elas bem poderiam nos ser ainda mais nefastas porque nos teriam tirado a criatividade do aventureiro, a adaptabilidade de quem não é rígido mas flexível, a vitalidade de quem enfrenta, ousado, azares e fortunas, a originalidade dos indisciplinados.
Fala‐se muito, também, da preguiça brasileira, atribuída tanto ao índio indolente, como ao negro fujão e até às classes dominantes viciosas. Tudo isto é duvidoso demais frente ao fato do que aqui se fez. E se fez muito, como a construção de toda uma civilização urbana nos séculos de vida colonial, incomparavelmente mais pujante e mais brilhante do que aquilo
que se verificou na América do Norte, por exemplo.
A questão que se põe é entender por que eles, tão pobres e atrasados, rezando em suas igrejas de tábua, sem destaque em qualquer área de criatividade cultural, ascenderam plenamente à civilização industrial, enquanto nós mergulhávamos no atraso.
As causas desse descompasso devem ser buscadas em outras áreas. O ruim aqui, e efetivo fator causal do atraso, é o modo de ordenação da sociedade, estruturada contra os interesses da população, desde sempre sangrada para servir a desígnios alheios e opostos aos seus. Não há, nunca houve, aqui um povo livre, regendo seu destino na busca de sua própria prosperidade.
O que houve e o que há é uma massa de trabalhadores explorada, humilhada e ofendida por uma minoria dominante, espantosamente eficaz na formulação e manutenção de seu próprio projeto de prosperidade, sempre pronta a esmagar qualquer ameaça de reforma da ordem social vigente.
Trecho extraído do Livro O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil, páginas 447 à 452
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