O campo moçambicano no século XXI: dilemas e perspectivas do campesinato frente ao agronegócio
- Camarada C.
- 27 de ago. de 2018
- 38 min de leitura

Introdução
As transformações socioespaciais que o meio rural moçambicano vem sofrendo nos dias atuais, impõe a ciência geógrafica, não apenas novos olhares, mas também uma profunda reflexão a respeito das metamorfoses que ocorrem no seio do campesinato. Este processo, é resultante da implementação de programas de modernização do campo que têm sido materializadas pela incorporação forçada de “novas” técnicas de produção em territórios camponeses. A busca inacabada de soluções por parte do governo para reverter o cenário atual do setor agrário moçambicano, marcado por baixos índices de produção e produtividade, não só tem revelado “novos” discursos modernizatórios, como também a emergência de “novos” modus operandi na agricultura moçambicana. Nos dias atuais, observa-se uma intensa territorialização do capital no campo moçambicano, com suposições de empreender uma modernização agrícola e, em última instância, para o desenvolvimento do país.
A entrada destas iniciativas em Moçambique é vista pelo governo local, como uma forma de promoção do Investimento Direto Externo (IDE) e com ele garantir a transferência de tecnologias para o país em vista do aumento da produção e da produtividade agrícola, em última instância, para a dinamização territorial. A entrada massiva destas corporações no campo moçambicano, com certeza, representa um enorme risco para o campesinato, porque a territorialização do capital, sempre significou a desterritorialização das práticas preexistentes, como também para os próprios sujeitos que as praticam, onde muitas vezes, são expulsos das suas terras. O presente artigo, objetiva contribuir para o debate paradigmático em face da territorialização do capital no campo moçambicano, como também para o entendimento da questão agrária moçambicana, sobretudo, nesta primeira metade do século XXI.
O campo moçambicano em disputa: entre os “de fora” e os “do lugar”
A entrada do capital no campo moçambicano tem estado a ocasionar fenômenos como, por exemplo, a disputa territorial, sobretudo, quando se implanta em territórios considerados aqui, como comunitários. Em face da migração do capital agrário para outros territórios, em 2009, o geógrafo brasileiro, Bernardo Mançano Fernandes, em seu texto, terá mencionado as consequências territoriais deste processo. Vamos ler o seu argumento:
“A questão agrária é, antes de outras implicações, um problema territorial. O agronegócio e a agricultura camponesa disputam territórios em quase todo o mundo. A produção de agroenergia intensificou esta disputa e criou problemas de abastecimento de alimentos. A procura de novos territórios para a expansão da agricultura tem hoje uma nova característica. Empresas e governos de diversos países estão arrendando, comprando, dando em arrendamento gigantescas áreas de terras” (FERNANDES, 2009, não paginado).
Atualmente em Moçambique, é possível ouvir pronomes pessoas do tipo, esse lugar é «meu», é «nosso», é daquele(s) e/ou é «dele(s)», etc. Neste processo, as grandes corporações agrícolas, sobretudo, do ramo do agronegócio, é que têm sido os principais protagonistas, embora consuetudinariamente, a terra pertença às comunidades locais, o camponês, conforme a Lei de Terras 19/97. Os proprietários destas empresas e/ou iniciativas, muitas vezes não são do lugar. Isto apenas revela uma contradição entre os interesses dos “do lugar” que são, portanto, de produção de alimentos para a sua sobrevivência, com os dos “de fora”, que são praticamente de produção de commodities para exportação (ver tabela 2). Este cenário é mais notável no Corredor de Nacala, onde as disputas territoriais e os conflitos pelo uso e aproveitamentos dos recursos naturais, sobretudo, a terra (e de outros contidos neste território) são cada vez mais intensos, envolvendo as grandes corporações agrícolas e as comunidades locais. Por exemplo, a «Matharia Empreendimentos», uma das empresas vocacionada na produção da soja, que opera no Corredor de Nacala, encontra-se em conflito com as comunidades locais, sobretudo, no distrito de Ribaué, província de Nampula. Esta empresa é proprietária de uma machamba (campo agrícola), que também é reivindicada pelas comunidades locais. Por exemplo, as comunidades locais afirmam que as terras que foram ocupadas pela empresa são a sua propriedade e isto, é visível no depoimento a seguir.
Somos nós que fomos retirados da área ocupada pela empresa. Quando a Empresa chegou, nós vivíamos nestas terras. Nós nascemos ali. Vivíamos lá com os nossas famílias.
Os responsáveis da empresa por sua vez, afirmam que são proprietários das terras e que as reivindicações das comunidades locais, são infundadas e dizem ainda que, são eles que estão a sofrer invasões dos populares nas suas terras, como revela o depoimento a seguir.
Dizer que quando a machamba foi fundada basicamente não vivia ali ninguém [...], as populações vieram muito mais tarde para aquela zona. Estabeleceram-se e cresceram [...] vinte quilômetros da nossa machamba, mais ou menos, tinha pequenas povoações, mas aquela zona basicamente não tinha mesmo ninguém. [...] A nossa área do DUAT [Direito de Uso e Aproveitamento de Terra] que nós estamos a explorar, é que está a sofrer invasão dos produtores [...] saem das suas comunidades virem fazer machamba dentro da nossa área.
Portanto, aqui está instalada uma disputa territorial. Se prestarmos atenção, tanto nos depoimentos das comunidades locais, como do representante da empresa, verifica-se o uso de pronomes pessoais, “nós”, “nossa”, “eles”. Estes aspectos, apenas comprovam que os territórios ao longo do Corredor de Nacala, estão em disputa. A disputa que se verifica neste território, não é apenas pela terra, mas também é pelos modelos de produção, neste caso, relações não-capitalistas de produção (campesinato) e capitalistas (agronegócio). O ProSAVANA, como o analisaremos mais em diante, é que tem agudizado estas disputas territoriais com as comunidades locais ao longo do Corredor de Nacala. Entre outras iniciativas em conflito com as comunidades locais no Corredor de Nacala, está a AgroMoz, Programa para o Desenvolvimento do Corredor (PEDEC), projeto do Rio Lúrio e a Green Resources, só para citar alguns exemplos. Estas iniciativas têm estado a serem denunciadas duma forma sucessiva pelas organizações de camponeses, a exemplo da União Nacional de Camponeses (UNAC), da Associação Rural de Ajuda Mútua (ORAM) e da Ação Acadêmica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais (ADECRU).
As autoridades locais (neste caso especifico, governamentais), muitas vezes, têm sido aliciadas e/ou mesmo cooptadas pelos discursos de caráter desenvolvimentistas, isto é, com teor “salvacionista”, segundo as quais, estas iniciativas visam à promoção do “desenvolvimento sustentável e inclusivo” no âmbito da entrada do capital no campo moçambicano. Em vez de defenderem os interesses das comunidades locais, as autoridades moçambicanas muitas vezes aparecem ao lado das grandes corporações capitalistas e o caso da empresa Milhulamete que se dedica a produção de florestal (eucalítpos) em Maracuane, na província de Maputo, é apenas o exemplo. Por tanto as autoridades governamentais acreditarem nesta “velha” falácia, as iniciativas do agronegócio, têm estado a ganhar espaço para a sua consolidação no campo moçambicano, sobretudo, no Corredor de Nacala. Embora, a territorialização destas iniciativas, esteja imbuída de questões sociais como, por exemplo, “sanar” a fome, a miséria e gerar postos de empregos, mas, mais do que resolver estes problemas, estão a recriar outros e de difícil remediar, tais como a destruição da Natureza e a “estrangeirização” de terras. Como veremos mais em diante, além dos conflitos de terra, os de caráter socioambientais estão entre os impactos negativos destas iniciativas no campo moçambicano, sobretudo, no Corredor de Nacala, fato que tem, levado a mobilização massiva dos movimentos sociais, a colocarem na vanguarda contra a territorialização do capital.
Este fenômeno ampliou-se a partir dos anos de 2007/8, devido à crise de preços de alimentos verificado neste período. Foi, no entanto, a partir desta altura, que o meio rural moçambicano, começou a ser marcado por uma intensificação de práticas atreladas ao modelo capitalista de produção – o agronegócio. Um dos discursos que acelerou este fenômeno foi o da suposta existência de “vazios humanos”, isto é, que na África Subsaariana, região a qual Moçambique faz parte, depunha de terras “livres” e “subutilizadas”, as quais eram propícias para a expansão de fronteiras agrícolas, iniciadas em outros países, a exemplo, do Brasil. Aliás, foi assim, que o ProSAVANA se territorializou em Moçambique. Até as próprias culturas, a exemplo, da soja, milho e mandioca, só para citar alguns exemplos, foram as mais referenciadas (ver SCHLESINGER, 2013). Isto, para dizer que, a forte procura de terras agrícolas para a produção de commodities, não é exclusiva a Moçambique, mas sim, toda a África. A visão que aponta que a África Subsaariana e Moçambique junto do Corredor de Nacala, apresentam “vazios humanos”, isto é, são territórios que apresentam terras “livres” e “subutilizadas”, é por si só, reducionista na medida em que “serve mais como um instrumento de dominação por meio das políticas neoliberais” (FERNANDES, 2008a, p. 280).
Essa forma de olhar o território ignora a forma e/ou a lógica de distribuição espacial da população no meio rural e também a forma como os espaços rurais são ocupados e utilizados, sobretudo, em Moçambique. Por sua vez, essa visão ignora o modo de vida, as práticas tradicionais dos povos, sobretudo, os seus valores e saberes, em suma, os hábitos e costumes das populações residentes no meio rural. Conforme Mosca e Bruna (2015, p. 4) “a designada disponibilidade de terras em África, geralmente, não corresponde à realidade”. No caso de Moçambique, Mosca (2014, p. 14), aparece a ironizar o fato, argumentando que “existe a percepção que Moçambique possui muitas terras disponíveis, com baixa utilização ou subaproveitada”. Rebatendo essa alegação, o autor afirma que, no caso de Moçambique, “existem os donos consuetudinários que são os camponeses” (Idem). Na verdade, se visitados os lugares que são considerados como “vazios humanos”, isto, que possuem terras “livres” e “subutilizadas”, podemos constatar algo contraditório, olhando pela forma de ocupação e gestão dos espaços rurais e também a própria organização da população no meio rural.
(Re)concentração e distribuição desigual da terra em Moçambique
A história repete-se em Moçambique [...] quando os primeiros exploradores chegaram à África, há cerca de seis séculos, traziam missangas e espelhos para trocar por ouro, marfim e outras riquezas naturais, e foram ajudados por alguns africanos a delapidar o “Berço da Humanidade”. Hoje os exploradores chamam-se investidores e continuam a vir buscar as nossas riquezas naturais, trazem dinheiro, prometem casas e outros bens materiais e continuam a ser ajudados pelos nossos conterrâneos, só que hoje esses africanos são membros do Governo, eleitos para servir o povo e fazer cumprir as leis do Estado. In: Jornal @Verdade (2015, p. 05).
O fenômeno de concentração de terras em Moçambique, não é tão novo como parece ser. Pelo contrário, ele tem as suas raízes históricas, neste caso, a colonização portuguesa. É importante, destacar que a agricultura moçambicana, foi no período da colonização portuguesa, organizada e orientada para a produção de produtos tropicais, cujo objetivo era atender os interesses da metrópole. No entanto, a exploração agrícola moçambicana neste período, assentou-se apenas na monocultura (produção de algodão, sisal, tabaco, etc.), trabalho forçado localmente apelidado xibalo, em suma, foi marcado pelo trabalho escravo. Conforme Nnandi Azikiwe (1937 citado por Negrão, s/d, p. 3) durante a colonização portuguesa as “terras foram concedidas e subarrendadas às plantações onde os trabalhadores nativos sofreram todas as espécies de desumanidades”. Este processo levou a marginalização e/ou a expulsão de muitos camponeses que, além de serem expropriados das suas terras, foram ainda convertidos em mão-de-obra barata ao serviço das grandes machambas coloniais. Este fenômeno em Moçambique está a ser recriado novamente com a entrada do capital no campo. Tal como no passado em que os camponeses moçambicanos foram tidos como vassalos do colono, atualmente este fenômeno, está a dar-se da mesma forma, sendo os chamados investidores, os responsáveis, o que se torna numa reprodução do passado.
É a reprodução do passado porque a exploração do homem pelo homem na sociedade moçambicana voltou a acontecer com a implantação das grandes corporações agrícolas. Além da exploração da grão-de-bico que está a acontecer nas agroindústrias, se junta a este fenômeno, à expropriação dos camponeses e a apropriação da renda alheia, sobretudo, quando os camponeses são orientados a produzirem (mercadorias) para o mercado. Por exemplo, os que se assalariam nas agroindústrias, além das condições de trabalho serem (quase) desumanas, observa-se também que os salários são muito baixos (Hanlon & Smart, 2008), fato que levanta o debate sobre a ocorrência do trabalho escravo em Moçambique. Talvez a UNAC e a GRAIN, estejam certas no seu relatório de pesquisa, quando dizem, por exemplo, que a entrada destas iniciativas representa “uma nova era de luta contra plantações coloniais no Norte de Moçambique”. Partilhando o passado cruel vivido no período da colonização portuguesa, um camponês, por exemplo, afirma que, nos “primeiros tempos, a classe camponesa foi espezinhada e humilhada3”. É por isso mesmo que, os camponeses do Corredor de Nacala, entendem que, o que está a acontecer atualmente, se trata de um “neocolonialismo que está a vir políticamente4” pelo fato do processo de territorialização do capital em seus territórios, estar a ser acompanhado por discursos embuídos por questões sociais e/ou com teor “salvacionista”.
Mas, mais do que salvar e/ou retirar as comunidades locais dos escombros da fome e da miséria, observa-se que, enquanto o capital se territorializa, ao mesmo tempo, ele desterritorializa as práticas preexistentes e expulsa os camponeses das suas terras, concentrando tanto a terra, como a renda a seu favor. A concentração de terras nas mãos das grandes corporações agrícolas, como posteriormente será analisada, tem estado também a ganhar proporções alarmantes, fato que denuncia a existência de injustiça social no campo moçambicano, ao verificar-se que as comunidades locais continuam (como sempre) com extensões de terras que são em média de 1,5 hectares, quando as grandes corporações agrícolas, que as suas extensões de terras vão de 100 hectares para diante. Em Moçambique, está a ocorrer, o que podemos chamar de “privatização estatizada da terra”. Embora, a Constituição da República (ver artigo 109, número, 1 e 2), e a Lei de Terras de 19/1997 (ver artigo 3), sinalizem que “a terra é propriedade do Estado e não pode ser vendida ou, por qualquer forma alienada, hipotecada ou penhorada”, localmente, há estudos que demonstram a existência de um mercado de terras em Moçambique e até, quantificam a terra vendida e/ou mesmo arrendada. Portanto, este mercado de terras, tudo indica que poderá aumentar nos próximos anos e o programa “Terra Segura”, será o principal fator. Já que a ideia é identificar terras que supostamente estão “livres”’ e “subutilizadas” e entregá-las ao grande capital, este projeto apenas representa segurança para o capital e não o camponês e explicaremos a seguir.
Entendemos que este programa, é uma forma de mercantilização da terra, na medida em que o DUAT (Direito de Uso e Propriedade de Terra) que as comunidades estão a receber do governo, será para as instituições financeiras uma segurança e/ou garantia, caso o camponês solicite o crédito para desenvolver as suas atividades. Localmente, é possível ver abertura de instituições financeiras (onde o Estado tem tido o papel de destaque no processo), às vezes com juros bonificados, mas, esta é apenas uma tentativa de atriar os camponeses ao território do grande capital. Caso o camponês, não venha conseguir pagar o crédito por ele solicitado a tempo e hora, será em seguida, penhorado o seu “pedacinho” de terra, como forma de pagamento. Este processo leva o surgimento de comunidades sem-terra (no campo) e sem-teto (nas cidades), já que em muitos casos, as pessoas expropriadas do campo, a tendência em migrarem para as cidades. Portanto, o programa “Terra Segura”, precisa ser visto não apenas como uma maravilha como tem, pois, ele apresenta vários problemas de concepção. É por via disto, a terra em Moçambique, tenderá a concentrar-se na mão de poucas pessoas, sobretudo, dos capitalistas.
É preciso entender que, o processo de nacionalização de terras que ocorrera em 1975, não simbolizou o fim da exploração capitalista e/ou da renda capitalizada da terra, mas sim, à retirada da renda absoluta e/ou a privatização da terra. Essa exploração capitalista da terra em Moçambique vem sendo materializada pela entrada de grandes corporações agrícolas desde que este, conheceu as reformas neoliberais na década de 1980. Mosca (2011, p. 422) destaca, por exemplo, que “a Lei da Terra de 1997 não constitui um obstáculo à implementação de grandes projetos ocupando milhares de hectares, incluindo os habitados e ocupados pela população”. As iniciativas do agronegócio em curso em Moçambique, apenas revelam a materialização da exploração capitalista da terra (ver tabela 1 e 2). Mesmo sem ser privatizada, a terra começou a ser apropriada e a concentrar-se nas mãos de alguma elite moçambicana durante as reformas neoliberais, sobretudo, a partir de 1983/4. De acordo com Mosca (2011, p.205) quando a Frelimo começou com a distribuição de terras, “um grupo de famílias tradicionalmente importante, pessoas com relacionamentos com o poder, etc., procuraram mover influências para obterem maiores parcelas de terras” e o interesse era o mesmo – especulativo não a curto prazo, mas sim, a médio e longo prazo. Portanto, os especuladores moçambicanos foram gênios neste processo, pois estes esperaram até que “Moçambique entre na órbita deste negócio” (Mosca, 2011, p. 207) para começaram a especular, como forma de obterem as chamadas mais-valias.
Nos dias atuais, a terra virou um negócio, que além de ser seguro, tornou-se rentável para os especuladores moçambicanos e, muito deles, fazem parte da elite política e econômico (para não dizer a burguesia) moçambicana. Este fenômeno tem estado a ocasionar à concentração de terras nas mãos de uma minoria, neste caso a elite política e econômica, uma [pequena] fração da classe média moçambicana, como também do grande capital, que nem vive no campo. Dois fenômenos podem ser destacados neste processo, se os especuladores moçambicanos, não arrendam e/ou vendem as “suas” terras, eles se aliam aos capitalistas internacionais, por meio de formação das chamadas empresas transnacionais, fazendo assim, fluir os chamados “dinheiros internacionalizados”, cunhados por Milton Santos, em 2007. Sobre a especulação que tem estado em volta da terra em Moçambique, está outro fenômeno e bem conhecido na sociedade moçambicana, o “cabritismo”, ditado segundo o qual, “o cabrito come onde está amarado”. Neste processo, já que a terra é controlada pelos vassalos dos senhores especuladores, caso os investidores queiram alugar e/ou comprar as tais terras, estes últimos pela regra “cabritista” acente na sociedade moçambicana, são obrigados a darem de comer todos os “cabritos”, em sua frente, desde as pessoas que ficam a controlar as tais terras, até o suposto dono. É assim que funciona o negócio de terras, pois é uma rede de burocratas e ao mesmo tempo de especuladores. Importa referenciar ainda que, neste negócio, o comprador e/ou arrendador de terras, corre também o risco de ser burlado, já que há muitos “cabritos” no meio de tudo por dar de comer, sobretudo, os insaciáveis. Às vezes, muitos deles só têm estado a se aproveitarem da ocasião para se beneficiarem de um dinheiro alheio. Joseph Hanlon e Teresa Smart (2008) reportam como este esquema funciona. Vamos lê-los:
A terra provou ser uma questão fulcral. Muitos da nomenclatura, desde o topo até administradores de distritos, tinham-se servido de terrenos nas zonas rurais para si próprios. Uns tantos estavam de fato a investir e outros tinham machambas de fim de semana. Mas a ato nível havia pessoas com grandes extensões de terra que mantinham em pouso para a especulação. Se a terra fosse privatizada, esperavam vendê-la, se não fosse, tinham esperança de arrendá-las. Andando ao longo da estrada principal de Chimoio a Manica, veem-se extensas terras agrícolas de primeira qualidade – bons solos, boa pluviosidade, próximas da estrada. Só uma pequena parte é usada; mas está em nome de pessoas muito altas na hierarquia da Frelimo. Entrevistamos um investidor estrangeiro que queria produzir bananas para a exportação. Encontrou alguma terra perto da Beira, e a estória continua: “A terra era perfeita para bananas e eu podia criar 2000 empregos. Mas estava nas mãos de uma pessoa importante do partido que queria uma grande fatia. Fui falar com o Ministro da Agricultura na época que foi informar-se e veio dizer-me depois: essa pessoa é demasiado poderosa para eu poder intervir”. O investidor começou a procurar no corredor de Maputo. “Havia boa terra e os funcionários que a controlavam disseram que queriam promover o desenvolvimento e estavam preparados a negociar. Mas queriam que eu lhes desse, empregos pagos a 3 000US$ por ano”. “As bananas podem ser lucrativas, mas não se eu tiver que pagar 1 milhão por ano a cabritos” (HANLON & SMART, 2008, p. 237-238).
Desde a primeira década do século XXI, a concentração de terra nas mãos das grandes corporações agrícolas em Moçambique, tem ganhado índices preocupantes. Neste processo, a elite política e econômica (para não dizer a burguesia) local, não só tem se destacado na facilitação de títulos de terra, como também, observa-se a sua associação com o grande capital na constituição de empresas transnacionais. Para Santos (2007, p. 16) quando isto acontece, “são dinheiros internacionalizados”, que se movem. Mosca (2014a, p. 13) avança que além da conivência das autoridades moçambicanas, o próprio “Estado surge como o instrumento de um sistema de capitalismo monopolista em formação, capturado por interesses externos com benefícios minoritários para os que, direta e indiretamente, decidem sobre os licenciamentos”. Por exemplo, quando há conflitos, “regra geral, o Estado não é o ator que atua junto das comunidades [...] surge do lado das multinacionais e, se necessário, com forças policiais repressivas” (MOSCA, 2014b, p. 14). A crise de preços de alimentos ocorrida nos anos 2007/8, não só impulsionou a emergência de empresas transnacionais, como também o fenômeno de concentração de terras nas mãos do grande capital.
Como consequências disto, milhões de hectares de terras, não só foram alocadas para o grande capital em Moçambique, como também “centenas de acordos já foram assinados, abrangendo milhões de hectares” (UNAC & GRAIN, 2015, p. 3). Atualmente, Moçambique em termos de terra estrangeirizada, sobretudo, “no contexto africano, ocupa uma posição vantajosa, o que justifica ser o terceiro país, após a Etiópia e o Sudão, na procura de terras em África” (MOSCA, 2014b, p. 4). Cabanelas, Dolores e Matavel (2011, p. 8) baseando-se em dados do Banco Mundial, apontam que “todos os pedidos de DUAT e todos os DUATs emitidos em Moçambique para extensões de terra superiores a 1.000 há para fins agrícolas, pecuárias, plantações e reservas de caça entre 2004 e 2009 foram alocados 2,7 milhões de hectares de terra à investidores em Moçambique”. Na tabela 1, observa-se uma exacerbada concentração da terra em Moçambique nas mãos das grandes corporações agrícolas por regiões.

Nos dias atuais, o Corredor de Nacala virou num território mais disputado por grandes corporações agrícolas e, como podemos ver a tabela 2, ela denuncia a concentração de terras nas mãos das grandes corporações agrícolas, sobretudo, neste território.

Os dados apresentados nas tabelas 1e 2, demonstram uma injustiça em termos de distribuição de terras no campo moçambicano. Hanlon e Smart (2014 citados por Mosca, 201 p. 15) entendem que, em “cada nova plantação pertencente a estrangeiros já está a ser tirada a agricultores moçambicanos emergentes”. Os dados atuais sobre as explorações familiares apontam que continuam a ser de menos de 10 hectares (isso se pode lido em Mosca 2011 e 2014a). A respeito disso, Hanlon e Smart (citado por Mosca, 2014b, 15) ironiza o fato, apontando que “se um número significativo de agricultores moçambicanos expandisse para 10 hectares ou 20 hectares, ficariam com toda a terra hoje subutilizada e não ficaria nenhuma para os investidores”. Concordamos com o autor, pois as autoridades moçambicanas têm convidado os capitalistas com alegações de que existe em Moçambique de terras “livres” e “subutilizadas”, como veremos mais em diante, foi assim que o ProSAVANA, se territorializou. Importa destacar também que, as culturas que estes empreendimentos estão a cultivar (e/ou incentivam a cultivar), como podem ver na tabela 2, são do interesse destas corporações e não dos “do lugar” em termos de alimentação básica. Portanto, mais do que resolver os problemas que estas corporções afirmam serem capazes como, por exemplo, a fome, a miséria e desemprego nos lugares por onde se territorializam, apenas estão a ocasionar a concentração de terras a seu favor. Aliás, o aviso sobre a emergência deste fenômeno de concentração de terras a favor do capital, nunca faltou ao mundo. Em 2008, Bernardo Mançano Fernandes terá dado um prévio aviso ao mundo, mas parece que ele foi ignorado. Vale apenas recordar as suas palavras:
“as ocupações de terras do agronegócio começaram nas regiões onde este modelo de desenvolvimento controla a maior parte do território, concentrado a riqueza e aumentando a pobreza. Este é o novo conteúdo da questão agrária nesta primeira década do século XXI” (FERNANDES, 2008b, p. 49).
A luz da expropriação e/ou da usurpação de terras em curso em Moçambique, talvez os versos abaixo sejam de extrema importância neste momento:
Eu sou o preto da senzala a morar numa favela,
Sou dono da terra sem ter mandado nela,
Com os amigos quero paz,
Com os irmãos faço guerra,
Por isso sou explorado na minha própria terra,
Eu sou único rico que vivo na miséria,
Vivo da pena que sente de mim,
Vivo da miséria,
Enteado do mundo civilizado filho da miséria,
Sonho para ver se acordo livre da miséria,
Expulsei colonos e nunca o colonialismo [...].
Os versos transcritos acima expressam, não só um rancor das mazelas que esse fenômeno tem trazido na sociedade moçambicana, mas sim, a realidade das injustiças sociais que têm acontecido no campo moçambicano. O que está a acontecer ao longo do Corredor de Nacala nos dias atuais, é que tudo, sobretudo, os recursos naturais que estão dentro deste território, estão cada vez mais, a serem transformados em mercadorias. Portanto, essa privatização abrange um leque de aspectos, a paisagem, o rio e/ou poço onde o indivíduo tira água para beber, até o chão onde o sujeito ergueu a sua “palhotinha” e exerce diversas atividades de sobrevivência. Além da destruição da Natureza com o avanço das lavouras, que compromete as gerações vindouras em não ver pelos menos algum tipo de ave e de consumir frutas silvestres, os espaços de sacralização, além de sofrerem sua privatização quando o capital se territorializa, as próprias comunidades são impedidas de conversarem espiritualmente com os seus “entes queridos”, fato que representa uma morte simbólica de um povo.
Grandes corporações agrícolas: uma luz verde para Moçambique?
Achamos importante começar como uma pergunta, pois o objetivo com ela é esclarecer alguns equívocos que se observam na sociedade moçambicana perante a entrada de grandes corporações agrícolas. O governo moçambicano ao incentivar a entrada de grandes corporações agrícolas, argumenta que o objetivo é para a modernização agrícola do país e que através deste processo, elevar-se-ia a produção e produtividade, e, em última instância, a eliminação da fome e da miséria, como se o agronegócio tivesse essa função, é só ver nos argumentos que legitima a implementação do ProSAVANA. Mas, mais do que modernizar a agricultura moçambicana, apenas está a verificar, a modernização dos latifúndios. A sociedade moçambicana está obcecada pela modernização da agricultura sem, no entanto, medir as consequências territoriais do agronegócio enquanto modelo de produção, o qual diz ser uma alternativa para reverter a atual situação do país. As promoções sobre a existência de supostas extensas áreas de terras “livres” e “subutilizadas”, como veremos mais em diante, não param de serem feitas, desde as escalas mais baixas de gestão do poder ao nível mais alto.
Neste processo, é possível também encontrar alguns políticos, algum meio acadêmico moçambicano e membros de algumas organizações da sociedade civil a reproduzir estes discursos em vários fóruns, a exemplo dos debates televisivos. Este grupo social acredita que, tanto o futuro da agricultura moçambicana, quanto o desenvolvimento de Moçambique está nas mãos das grandes corporações agrícolas – o agronegócio e não no campesinato, algo paradoxal olhando para o modelo de desenvolvimento em questão. Ao se tratar de políticas de caráter neoliberais, os seus resultados não podem de maneira alguma ser negligenciados dado o caráter paradigmático, contraditório e desigual do capital no campo, embora os discursos que entram com estas iniciativas em Moçambique, sejam sensíveis e embutidos por questões sociais. Há um mito que paira na sociedade moçambicana, que está a ser reproduzido de governo para governo, com destaque para a governação do então, presidente Armando Emílio “Guebuza” (2005-2015) e a atual de Filipe Jacinto “Nyusi” (2015...), segundo o qual as grandes corporações, são a solução dos problemas moçambicanos como, por exemplo, a fome, a miséria e o desemprego. O atual presidente da República de Moçambique, Filipe Jacinto “Nyusi”, demonstrou isso no seu discurso durante a vista do presidente turco, Recep Tayyp Edoğan, em Janeiro de 2017. Vamos recordar as suas palavras:
“O governo moçambicano de acordo com o seu programa quenquinal de governação [2015-2019], elegeou áreas em que incide a sua atuação, nomeadamente: a agricultura, infraestrutura, energia e turismo [...]. Na agricultura temos vindo a mobilizar esforços nacionais e do setor privado com vista a alcançar a autossuficiência alimentar e aumentar a renda. Para este fim, consideramos importante explorar a cadeia de valor com ênfase para o agronegócio onde o nosso potencial da agricultura pode e deve beneficiar da crescente procura de alimentos tanto ao nível nacional como global”.
Além de ser um discurso ambíguo sob ponto de vista da materialidade, verificamos nele, a reprodução do mito segundo o qual, o agronegócio é a solução da fome e da geração de renda para as famílias produtoras moçambicanas. A sociedade moçambicana entende ainda que, cedendo às supostas terras “livres” e “subutilizadas” ao grande capital, automaticamente Moçambique sai da lista dos países pobres. Este aspecto foi destacado pela Ana Rita Sithole, membro e deputada na Assembleia da República por bancada parlamentar da Frelimo, no programa «OPINIÃO NO FEMENINO», da STV. Recordemos as suas palavras:
Mas, no geral quando alguém, aqueles que têm oportunidades de viajarem de avião, quando estão a chegar seja de qualquer província, quer que seja da África do Sul quando o avião está a criar condições de aterra, olhem um pouco para o país, vê que nós ainda precisamos desenvolver este país. Este país não está ocupado todo ele.
Como se pode ver na citação acima, o desenvolvimento de Moçambique é visto pela ocupação das terras moçambicanas pelas grandes corporações agrícolas. Por exemplo, quando a terra de uma determinada comunidade é expropriada e/ou usurpada por grandes corporações agrícolas, a sua reivindicação é vistas pelas autoridades moçambicanas, como sendo uma retratividade ao desenvolvimento do país. Um destes casos verificou-se no ano de 2016, sobretudo, no distrito de Maracuene, na província de Maputo, após as comunidades locais terem se colocando a reivindicar as suas terras que alegamente estavam a ser expropriadas (e/ou mesmo usurpada) pela «Empresa Mihulamete», especializada na plantação de eucaliptos. Este episódio mereceu ainda a análise da deputada Ana Rita Sithole, durante o programa «OPINIÃO NO FEMENINO» da STV, onde deixou ficar a seguinte afirmação:
“A maneira que eu vi o debate sobre este conflito de maracuene, deixou-me um pouco perplexa porque me pareceu que é mais um investimento no grupo de tantos outros que existem pelo país fora, o ProSAVANA e tantos outros. São projetos de longa dimensão, mas que trazem ganhos e neste caso concreto pareceu-me que é uma coisa que vale apenas existir em Maracuene. Este problema de nativos ainda carece de algum entendimento, algum estudo porque corremos o risco de retrair o desenvolvimento do nosso país com estes tipos de reivindicações que muitas das vezes são reivindicações com base em programas oportunistas, sabem que vão receber indenização, recebem depois tornam a voltar, alienam as parcelas que se lhes atribuem nos programas de reassentamento”.
Esta forma de pensar das autorid que o meio rural moçambicano vem sofrendo nos dias atuais, impõe a ciência geográfica, não apenas novos olhares, mas também uma profunda reflexão a respeito das campo moçambicano, ganharam legitimidade porque as autoridades moçambicanas acreditaram e continuam a acreditar que são a solução dos problemas moçambicanos. Por exemplo, aliado a suposta existência de grandes extensões de terras “livres” e “subutilizados”, o governo tem pautado por entregar estas terras ao setor privado em detrimento do setor familiar e a sua justificação tem sido a de que, os camponeses são «preguiçosos», «ineficientes» e em última instância «não competitivos» como sucedeu com a entrada do ProSAVANA. Aliás, o presidente Nyusi, chegou até a afirmar que “não podemos fazer uma agricultura empírica, mas sim, através de investigação cientifica9”. Portanto, não se sabe o certo, se estava a responder os que têm criticado severamente o setor da agricultura, que ele, pouco tem feito, tanto pela economia do país, sobretudo, em termos de contribuição para o PIB, como também no combate a fome, a desnutrição cronica e na redução da miséria no meio rural.
Embora, na sociedade moçambicana, sobretudo, na esfera política e na algum momento, no seio da sociedade civil, haja quase um consenso que a territorialização das grandes corporações é a solução dos problemas moçambicanos, sobretudo, a fome, a miséria, o desemprego, a geração de renda e entre outros, acreditamos serem apenas retóricas (para não dizer mitos) e a seguir, explicaremos por que. As grandes corporações agrícolas vêm desenvolvendo suas atividades com mais intensidade desde a primeira década do século (embora a sua entrada comece logo que Moçambique aderiu às reformas neoliberais na década de 1980), mas até então, Moçambique não solucionou a questão da fome e a desnutrição crónica e muito menos acabou com a miséria no meio rural. Mesmo com estas iniciativas em curso, Moçambique continua até os dias atuais a importar produtos da primeira necessidade de outros países, sobretudo, da África do Sul para abastecer as cidades de Maputo e Matola, respetivamente. Isto, apenas revela que sob ponto de vista da segurança alimentar, as grandes corporações agrícolas, não são a solução do problema. Além da territorialização destas corporações agrícolas muitas vezes levarem consigo a desterritorializações dos do lugar, a pobreza nos lugares onde atuam estas corporações, é um dado tangível. Em face destas contradições do capital em Moçambique, o economista João Mosca, alerta que, se por parte do Estado moçambicano não se desenhar:
“uma política séria de fazer o desenvolvimento da agricultura, pensando também nos pequenos produtores, vamos ter cada vez mais pobreza, mais problemas sociais e de instabilidade no meio rural, vamos ter cada vez mais situação de que as pessoas estão absolutamente desesperadas e não saem da pobreza e da fome”.
É uma ilusão pensar que a territorialização das grandes corporações é uma solução para acabar com a fome, como o governo moçambicano tem professado quando este, por exemplo, quer legitimar a entrada de grandes corporações agrícolas no país. É preciso entender que, uma produção norteada para mercado, produz o que o mercado necessita, pois se trata de um produto para atender as demandas externas, de outras nações e isso, pode necessariamente não ser alimento para os “do lugar”. A territorialização das grandes corporações agrícolas num determinado lugar, em vez de melhorar as condições de vida das populações lucais, apenas “contribuem para a perda de ativos e deixam as pessoas pior do que estariam sem investimento” BANCO MUNDIAL (2010 citado por Zoomers, 2013, p. 17) e, é o que se observa em Moçambique. Em quase todas as regiões do país (Norte, Centro e Sul), grandes corporações agrícolas até então, já demosntraram o quão são uma contradição quando se territorializam. No norte do país, a situação está cada vez mais a ganhar contornos alarmantes, onde além das populações locais serem desterritorializadas e expulsas das suas terras, ainda são cercadas pelo capital, isto é, impedidas de exercer a sua cidadania e usufluirem dos recursos naturais contidos em seus territórios. Por exemplo, a empresa Alfa Agricultura Lda “depois de ter obtido o seu DUAT, procedeu imediatamente à expulsão dos agricultores, construiu uma vedação em torno da propriedade e começou a cultivar soja” (UNAC & GRAIN, 2015, p. 9, grifo meu).
Indignada e sem onde ir, uma comunidade de Micoco, na provínicia de Naissa, desabafa, por exemplo, que: “quem arranca a terra, arranca tudo: nossa vida, o nosso futuro e dos nossos filhos. Já não iremos ter acesso as nossas mangas, bananas, capim para cobrirmos as nossas casas. Para andarmos é preciso autorização da empresa”
(JUSTIÇA AMBIENTAL & UNAC, 2011, p. 6, grifo meu). No centro, além das populações serem expulsas das suas terras, das suas lavouras serem afetadas, elas também tem estado a sofrer com doenças ligadas aos agrotóxicos, sobretudo, quando ocorrem os processos de pulverização pelos aviões agrícolas. Este caso, aconteceu na província da Zambézia e a empresa agrícol AgroMoz, segundo o relatório da UNAC & GRAIN publicado em 2015, foi a respensável por este ato. A UNAC e a GRAIN, em seu relatório descreve o seguinte cenário:
"Na campanha agrícola de 2013/2014, um grupo de trabalhadores da AgroMoz veio nos informar que durante a pulverização, realizada por um avião de pequeno porte, as pessoas tinham de abandonar as suas casas, de forma a evitar possíveis danos causados pelo produto químico. Depois de alguns dias, quase todos os moradores começaram a apanhar gripe e as colheitas morreram (UNAC & GRAIN, 2015, p. 10).
Bourne Jr (2014) descrevendo o cenário que aconteceu no distrito no sul do país, sobretudo, em Xai-Xai, destaca o seguinte: “foi tudo muito rápido. A mulher mal nota a chegada de enorme trator. Primeiro ele avança sobre as bananeiras. A seguir arrasa o milharal e destrói plantações de feijão, batata doce e mandioca” (grifo meu). Na verdade esse modelo de produção monta um arame farpado invisível e as populações pouco sabem da e/ou sobre a sua existência, pois este se trata do modus operandi do capital, ele pouco considera os sujeitos locais e muito menos a natureza. Diz Martins (1986, p. 9) onde o capital se territorializa, observa-se que, “vai cercando tudo, vai tirando cada um de seu lugar”. O autor finaliza lamentando que com este modelo produção, não restam dúvidas que as populações vão descobrir que “no verão já não há terra para plantar, rio para pescar, mata para caçar” (Martins, 1986, p. 9) por forma a garantirem a sua sobrevivência e/ou a sua existência.
Este, é o cenário que se vive no campo moçambicano, sendo que Cabanelas, Dolores e Matavel (2011, p. 2) alertam “o aumento das áreas ocupadas por grandes projetos terá com certeza um maior impacto, em termos de disponibilidade e acesso à terra e água, exacerbando a sua já tão precária condição de pobreza”. As organizações de camponeses em Moçambique estão em alerta quanto à migração destas iniciativas no campo. A UNAC está [mais do que] ciente que estas iniciativas são um risco para o campesinato e também para os seus praticantes. Segundo ela, estas práticas não tem vindo a “apresentar alternativas de desenvolvimento que se adequa a nossa realidade”11 . Desgadas, a UNAC através do seu núcleo de Nampula, a UPCN (Uniao Provincial de Camponeses de Nampula), sinaliza que:
Primeiro dizer que nós estamos contra a isso, [...] os camponeses constitui a maioria da força laboral a nível das regiões rurais e que praticam agricultura de subsistência familiar. O segundo aspectos é que nós como movimento camponês em Moçambique, não estamos contra o desenvolvimento, mas o modelo de desenvolvimento. Mas também, vir investidor em Moçambique, na província de Nampula ou na zona norte em nome de desenvolvimento e criar injustiças como tais que estão acontecendo atualmente, que é tirar os camponeses das suas zonas de produção em nome de desenvolvimento, todos os camponeses cá na região norte e Nampula em particular, estamos contra essas atitudes.
E diz ainda que, a luta continuará enquanto estas corporações introduzirem-se no campo moçambicano e a seguir transcrevem-se os depoimentos.
[...] vai ser uma das grandes batalhas, tem se sublinhar, que nós como camponeses, não somos só camponeses, somos uma classe e a classe camponesa já disse que nós vamos nos opor a eles, dura quanto o tempo for necessário, mas nós queremos que os nossos interesses sejam salvaguardados porque uma das questões que é colocada é que se nos tiram esse espaço que temos usado para agricultura, depois vamos para onde? Aonde vão nos colocar?
Esta forma de (re)agir em face da territorialização do capital no campo moçambicano, não é apenas da UNAC, mas também de outras organizações de camponeses, a exemplo, da Associação Rural de Ajuda Mútua (ORAM), da Ação Acadêmica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais (ADECRU). João Mosca atento a barbárie do capital no campo alerta, apontando que “ou as pessoas resistem, diferentes formas de resistência, ou então se resignam e ficarem na pobreza”14. Portanto, a realidade do campo moçambicano, mostra que os camponeses estão a resistir ao capital, lutando, tanto pela sua permanência na terra, como também contra a sua integração ao mercado.
ProSAVANA: um presente sombrio e um futuro incerto para as comunidades ao longo do Corredor de Nacala
Nos dias atuais, a experiência moçambicana de busca pelo desenvolvimento por via do setor da agricultura, tem sido acompanhada por discursos com teor desenvolvimentista e como vimos anteriormente, têm estado a ocasionar a concentração de terras em Moçambique nas mãos das grandes corporações agrícolas. O ProSAVANA não deve ser visto fora deste contexto, pois o “desenvolvimentismo” é o que lhe caracteriza. O ProSAVANA, é dos programas que deixa as autoridades moçambicanas esperançosas, pois acreditam ser ele, a solução dos problemas moçambicanos, neste caso de ideias, a fome, a miséria, o desemprego só para citar alguns exemplos. Mesmo que as autoridades moçambicanas acreditem neste “velho” mito que entra com o ProSAVANA, a experiência do capital no campo, como será analisado mais em diante, revela ser impossível à materialização destes aspectos por onde se territorializa. Oficialmente em implementação desde 2011 no Corredor de Nacala, o ProSAVANA inspira-se na experiência brasileira adquirida no cerrado brasileiro no âmbito do PRODECER (Programa de Densevolvimento dos Cerrados), implementado nos finais da segunda metade da década de 1970, numa cooperação bilateral entre Brasil e Japão, que durou cerca de 20 anos. Por “coincidência”, o ProSAVANA também apresenta a mesma esperança de vida, de cerca de 20 anos.
Abordar academicamente um assunto tão delicado como o ProSAVANA, em que por muito tempo foi politizado, implica além de postura e/ou competência acadêmica, ter uma decisão firme para analisá-lo dada a sua complexidade. Outro dado importante, é que além de ser politizado, o ProSAVANA, transformou-se num dos programas mais “blindados”, em termos de acesso a informação, devido a elevada burocracia, tanto por parte das autoridades moçambicanas, brasileiras e japonesas quando contatadas. É verdade, que dum momento para outro, o ProSAVANA, tornou-se num dos programas mais estudado por estudiosos de diversas áreas do conhecimento, a exemplo de geógrafos, Jornalistas, acadêmicos de relações internacionais, economistas, polítólogos, e entre outros, dentro e fora de Moçambique, em que qualquer um destes, escrevia e publicava alguma coisa. Basta entrar na página do Google e escrever a palavra “ProSAVANA”, sai dezenas de opções e cabe o pesquisador escolher o que lhe interessa em termos de informação. No decorrer deste debate, o ProSAVANA mereceu todo o tipo de análise (e/ou opinião), onde alguns autores através das suas análises equivocadas, contribuiram para a consolidação deste programa, como o caso de Natália N. Fingermann (2013) que escreve em seu texto “os mitos por trás do ProSAVANA”.
A autora neste texto, faz duras críticas aqueles autores que apontavam em seus textos que o ProSAVANA, era parte de um processo de expropriação e/ou usurpação de terras em Moçambique e que o Brasil através deste modelo de produção, estava a exportar também os conflitos sociais. O texto de Elizabeth Alice Clements e Bernardo Mançano Fernandes, afirmaram em um texto intitulado “Land Grabbing, Agribusiness and Peasantry in Brazil and Mozambique. International Conference on Global Land Grabbing II” e de Fátima Melo intitulado “o que quer o Brasil com o ProSAVAVA”, são os textos que mecereram as críticas da autora. Outros autores, apenas se colocavam em apontar a importância econômica do ProSAVANA para Moçambique, deixando de lado, os possíveis impactos negativos e/ou consequências territoriais (sociais e ambientais) deste programa, como fez o jornalista moçambicano, Carlos Tembe em um texto intitulado “ProSAVANA volta a debate público”, publicado no Jornal Notícias. Dados obtidos em 2016 durante a pesquisa de campo, indicam que o ProSAVANA nunca foi discutido abertamente e que o espeço de diálogo sempre foi restrito. Este aspecto, é tido como dos que levou a exclusão das organizações da sociedade civil, organizações de camponeses, os próprios camponeses, congregações religiosas e entre outros segmentos sociais em diversas fases de implementação do ProSAVANA.
Após a sua territorialização em Moçambique, o ProSAVANA dum momento para outro, transformou-se num dos programas mais criticados pelas organizações da sociedade civil, organizações de camponeses e congregações religiosas. Para se livrar as críticas, o governo moçambicano foi obrigado a nacionalizar o ProSAVANA, passando assim a chamar-se, “Programa do Governo de Moçambique que conta com o apoio técnico e financeiro dos Governos do Japão e do Brasil”. Os críticos do ProSAVANA, além de serem conotados de serem antidesenvolvimentistas, conspirados, pertencentes a partidos da oposição, para fragilizá-los ainda mais, os executores do ProSAVANA, começaram a cooptá-los e esta última ação, é responsabilizada a JICA em conivência com o governo local. Neste processo de cooptação das organizações da sociedade civil, surgiram duas alas antagônicas, sendo uma “anti-ProSAVANA” e, a outra, “pro-ProSAVANA”. A primeira, era composta pelos críticos do ProSAVANA e ao mesmo tempo constituintes da “Campanha Não ao ProSAVANA”. Estes grupo, era composto pela União Nacional de Camponeses (UNAC), a Associação Rural de Ajuda Mútua (ORAM), a Ação Acadêmica para o Desenvolvimento das Comunidades Rurais (ADECRU), a Justiça Ambiental, Livaningo, Fórum Mulher, Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (LDH), e entre outras.
A segunda, era composta por organizações consideradas mais moderadas, sob ponto de vista discursiva. Destas organizações, faziam parte, a Platafoma Provincial das Orgnizações da Sociedade Civil de Nampula (PPOSC-N), o Fórum das Organizações não Governamentais do Niassa (Fonagni), o Fórum das Organizações não Governamentais da Zambézia (Fongza) e a Rede de Organizações para Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Zambézia (Radeza). Este último grupo, é tido comoaquele que foi cooptado pelos executores do ProSAVANA, uma vez que se diz que, é através destas organizações que foi possível a criação do Mecanismo de Coordenação das Organizações da Sociedade Civil (MCSC) para a implementação do ProSAVANA. Diz-se também que a intensificação da estratégia de cooptação das organizações da sociedade civil empreendida pela JICA, em parte, se dá a partir das organizações da “ala pro-ProSAVANA”. Em termos de acesso a informações referentes ao ProSAVANA, este processo levou também a marginalização de organizações da sociedade civil integrantes da “ala anti-ProSAVANA”, uma vez que, maior parte delas, estão cedadas na cidade capital do país, Maputo. Já as da “ala pro-ProSAVANA”, estão cedeadas no centro e norte de Moçambique, sobretudo, na área de implementação do ProSAVANA, e apenta-se que estas, são as que tinham acesso as informações do ProSAVANA e entre outros previlégios.
Aliás, diz-se também que algumas das organizações da “ala pro-ProSAVANA”, beneficiaram-se duma de algum valor monetário por meio de contratos que são considerados pela “ala anti-ProSAVANA”, como sendo ilícitas, por envolver diretamente lideranças destas organizações. Diz-se ainda que o próprio ProSAVANA, ganhou legitimidade no Corredor de Nacala, graças a conivência das organizições da sociedade civil integrantes da “ala pro-ProSAVANA”, sobretudo, após a criação do MCSC. Além destes aspectos, adicionam-se fenômenos como a “elitização" e a “militarização” das auscultações e/ou consultas públicas. No primeiro caso, havia maior participação de funcionários do Estado e membros e simpatizantes da Frelimo – partido no poder. Já no segundo caso, observava-se a presença de polícias, fardados e bem armados em lugares onde decorriam as consultas públicas. A falta de diálogo, de transparência, intimidação e/ou ameaçadas de prisão e agressão aos militantes de certas organizações de camponeses, como aconteceu com alguns da UNAC em Janeiro de 2016, mobilização coercitiva, violência psicológica, fazem parte dos aspectos que marcaram o processo de implementação do ProSAVANA. Estas ações e/ou práticas protagonizadas pelos executores do ProSAVANA, colocam em dúvida se na verdade o ProSAVANA está mesmo ao serviço das comunidades locais. É verdade que, há essa toda euforia de que as populações que vivem no Corredor de Nacala, vão sair da miséria e que estarão livres da fome, mas não se diz, como é que este milagre será materializado, pois no agronegócio, não é tão simples assim.
A forma “romantizada” de como o ProSAVANA em Moçambique, vem sendo tratado pelos seus executores (Brasil, Japão e Moçambique) e por aqueles que o defendem e acreditam na coexistência pacífica do agronegócio com as comunidades locais por onde o agronegócio se territorializa, cria uma imagem de que ele, é na verdade o próximo “milagre” ou a verdadeira solução dos problemas moçambicanos, como por exemplo, a insegurança alimentar e desnutrição crônica, desemprego, pobreza, etc. Essa forma de olhar este programa leva, portanto, a omissão de várias mazelas que este modelo de produção no campo, tem trazido sobre os territórios onde se territorializa. Com o PRODECER, a fome não acabou no Brasil, embora as autoridades brasileiras afirmem que ele, foi um “sucesso”. Por exemplo, conforme Schlesinger (2013, p. 45) o “Prodecer, apresentado como uma verdadeira revolução a favor da produção de alimentos, [...] resultou em insegurança alimentar e necessidade de compra de alimentos de outras regiões” (SCHLESINGER, 2013, p. 45). Bernardo Mançano Fernandes destaca que, “o PRODECER, foi feito para abastecer o Japão, então, não dá para fazer a relação do PRODECER com a fome do Brasil. Quem acaba com a fome no Brasil não é o agronegócio, é o campesinato. Tanto a fome no Nordeste só acabou quando o governo Lula, ampliou o número de assentamentos, criou bolsa família e criou o Programa de Aquisição de
Alimentos”.
As lideranças de camponeses em Moçambique, sobretudo, por parte da ORAM, estão convencidas que “não existem espaço para falar de segurança alimentar dentro do ProSAVANA se olharmos para a produção de monoculturas” 16 . Por exemplo, o PRODECER o qual o ProSAVANA se inspira, além de expropriar e expulsar muitos camponeses das suas terras, não criou condições sociais para que os cerradenses se beneficiassem dele. Para o geógrafo brasileiro, João Edmilson Fabrini, “o PRODECER foi um sucesso mesmo, foi um êxito, maravilha do ponto de vista capitalista, [mas] do ponto de vista das comunidades, foi uma desgraça”17. A mesma leitura é partilhada pelo também geógrafo brasileiro, Bernardo Mançano Fernandes, onde diz que, “se você me perguntar Bernardo, qual foi à contribuição [do PRODECER] para a população local? Nenhuma contribuição para a população local. Para quem foi à contribuição? Para a elite brasileira e para o governo japonês”18. É verdade que, o ProSAVANA vai gerar desenvolvimento no Corredor de Nacala, mas ele, não vai beneficiar a todos, em questão, está o seu algo grau excludente. Os conflitos sociais, foram tão intensos no cerrado brasileiro durante o período que o PRODECER foi implementado e, por tratar-se do modelo de produção em curso através do ProSAVANA, não se pode ignorar a hipótese da possível reprodução destes no Corredor de Nacala, mesmo que os seus executores estejam otmistas. O representante da CPT (Comissão Pastoral da Terra), apenas diz, por exemplo, que “sinto, pena que o Brasil está exportando os conflitos, acredito que não tem como contornar isso”19. João Edmilson Fabrini, entende que, “tudo caminha para uma reprodução dos conflitos existentes aqui, lá no Moçambique”20.
A geógrafa brasileira, Vera Lúcia Salazar Pessôa, destaca que durante a implementação do PRODECER no cerrado brasileiro, “muitas destes agricultores mudaram para a cidade e só um tempo depois é que perceberam o valor que as terras da chapada alcançariam com a agricultura moderna”21 . E para Moçambique, esta acadêmica deixa um recado, apotando que “no caso de Moçambique em que a população camponesa é muito maior do que nas áreas da “chapada” onde o PRODECER se instalou, a meu ver a situação tornar-se-á conflituosa”22. É preciso compreender que o agronegócio e campesinato, são modelos de produção norteados por interesses diferentes e, os seus territórios também são organizados duma forma diferentes, e é por isso, que eles estão num intenso conflito. O ProSAVANA, deve ser analisado como qualquer outro programa virado para o (agro)negócio, pois trata-se da territorialização do capital monopolista na agricultura moçambicana. Este modelo de produção em introdução ao longo do Corredor de Nacala difere tanto da agricultura praticada pelas comunidades atualmente, pois, trata-se, portanto, da territorialização da agricultura capitalista, onde se observa o uso intensivo, tanto do capital, como de tecnologia. Diante disto, mesmo que esteja a decorrer “engenharias” para o ProSAVANA seja pelo menos “sustentável” e “inclusivo”, a verdade, é que o agrogenócio, não passa de uma “modernidade e barbárie” (Oliveira, 2003), e isto se deve porque ele, “é, portanto, em si, contraditório e desigual” (Oliveira, 1994, p. 46) por onde se territorializa. Como desde que o ProSAVANA foi tornado público, os seus executores apresentam apenas uma face da moeda, isto é, a sua importância econômica, Fabrini e Ross (2014, p. 7) desvendam as duas faces do agronegócio, sinalizando que, “de um lado, o agronegócio é sinônimo de produtividade, de outro é excludente, promotor da miséria, degradação ambiental, violências e de tantas outras barbáries”. É desta forma que o ProSAVANA deve ser visto.
Este modelo de produção que entra com o ProSAVANA, transforma o território, reordenando-o e especializando-o apenas para a produção de commodities, e, este processo, leva a destruição de tudo que encontra, desde as práticas preexistentes e a própria natureza, ampliando desta feita as desigualdades sociais. Foi por isso mesmo que, o sociólogo português, Boaventura de Sousa Santos, afirmou que implementar o ProSAVANA, poderia trazer de novo o fenômeno “já registrado na história, que é a maldição da abundância” e, explicando, o acadêmico afirmou que, “o que está em causa, é um processo muito vasto de usurpação da terra, expulsão dos camponeses e destruição ambiental” (O Pais, 2013). Aliás, as denúncias que a UNAC têm feito vão no desde 2012, vão também neste sentido, pois ela reconhece que este modelo é uma verdadeira ameaça para a campesinato e para os sujeitos que o praticam. O recrudescer das lutas e resistências contra a implementação do ProSAVANA, se dá a partir de 2013, marcada pelo envio de uma carta aberta as três governos signatários da iniciativa, neste caso o Brasil, Japão e Moçambique. O lançamento da “Campanha Não ao ProSAVANA”, marcou o intenso período de lutas e resistências em Moçambique protagonizadas pelos movimentos sociais, contra o capital. Convenhamos esclarecer logo alguns equívocos aqui, pois observamos a sua reprodução em vários estudos. Os Princípios de Investimentos Agrários Responsáveis ([PRAI] ou PIAR como os executores do ProSAVANA, os chamam) que se dizem, que vão nortear o processo de implementação do ProSAVANA, é apenas uma recriação do capital nesta primeira metade do século XXI, porque cá entre nós, sabemos que o capital nunca foi, não é, e podemos até dizer que, já mais será responsável sob ponto de vista das suas ações por onde se territorializa.
Os códigos de conduta, os quais os executores do ProSAVANA, pretendem usar, eles não especificam as ações as quais poderão ser empreendidas para não ocorrer, por exemplo, o processo de pilhagem dos recursos naturais que são vitais para as comunidades ao longo do Corredor de Nacala. Apenas, eles dizem, por exemplo, que a ideia que se pretende é “educar” e/ou conscientizar o capital, como se algum dia, ele [o capital] fosse educado e consciente de que as suas práticas são um atentado à humanidade, como temos verificado nos dias atuais. A questão que se coloca é: como fazer com que o capital que entra com o ProSAVANA em Moçambique seja responsável e educado e que ao mesmo tenha consciência de que as suas ações são uma maldição para a humanidade? Este, além de ser o principal paradoxo e/ou paradigma do ProSAVANA em Moçambique, é também um dos principais desafios que os executores deste programa tem pela frente. A agricultura sob contrato, além de ser uma forma indireta de territorialização do capital em territórios camponeses (e/ou comunitários), é também uma forma de aprisionar o camponês, procurando explorá-lo, expropriá-lo em seu próprio território, apropriando-se de uma renda alheia e isto, se dá ao redirecioná-lo ao mercado como o ProSAVANA, tretende fazer, que também é controlado pelo capital.
Neste esquema de produção, não existe a autonomia produtiva, pois o mercado é gerido pelos quatros problemas da economia, entre eles, o que produzir; como produzir, para quem produzir e quanto produzir. Há outro problema (talvez os economistas tivessem que considerar, mas que os que estudam a questão agrária levantam em seus debates) que achamos importante trazê-lo, está relacionado com o quando produzir. No agronegócio não ocorre o pouso do solo que, que caracteriza as relações de produção não capitalista. No agronegócio funciona o que na gíria popular se diz “time is maning”, onde quanto menos tempo de espera para cultivar uma nova commoditie, maior é a acumulação da riqueza, neste caso do capital. Outro dado importante, é que com este modelo de produção, os camponeses passam a ser dependentes dos capitalistas e isso, se observa em relação uso de agrotóxicos e às sementes geneticamente modificadas. Em relação às sementes, importa referenciar que elas, apenas são produtoras e não reprodutoras, e isto que faz com que, o camponês compre sempre em cada época agrícola, uma nova semente para cultivar. Portanto, há questões que estão a serem ignoradas pelos executores do ProSAVANA, sobretudo, quando confrontados com organizações da sociedade civil. Portanto, nem todas as críticas de que o ProSAVANA é vítima, é “conspiração” e/ou “mentira”, pois a realidade, revela que a territorialização do capital no campo, significa ao mesmo tempo o surgimento de várias contradições.
Considerações finais
Os resultados do processo de territorialização do capital no campo moçambicano, já são visíveis em quase todas as regiões do país, norte, centro e sul. Os conflitos socioambientais são, portanto, uma realidade no campo moçambicano, acompanhados pela expropriação e expulsão dos camponeses das suas terras e também, a destruição da natureza um dado tangível. Este processo tem estado a ocasionar a sua destruição da agricultura camponesa, na medida em que muitas corporações têm induzido os camponeses a produzirem mercadorias para a exportação. A descampesinação do campesinato tem consequências graves, pois isto leva o colapso da soberania alimentar e consequentemente, a insegurança alimentar. Duma forma específica, o ProSAVANA, não é a solução para os problemas dos moçambicanos, mas sim, ele é a solução para os problemas do Japão e de outros países (asiáticos) que dependem das importações. É importante destacar ainda que, o ProSAVANA, não tem a “cara” de acabar com a pobreza em Moçambique, pois trata-se de um modelo de produção extremamente excludente e concentrador da renda para a minoria.
Com isto, queremos dizer que, o ProSAVANA, apenas vai enriquecer uma minoria, neste caso a elite locais e a de fora, a qual não vive no Corredor de Nacala. Já que se observa a formação de uma pequena burguesia rural em Moçambique e no Corredor de Nacala duma forma particular, talvez essa se beneficie, mas dizer que os camponeses se beneficiarão na sua generaldade é uma ilusão, pois estes últimos, além de serem pobres, são também descapitalizados. A destruição da natureza por onde o capital se territorializa, é uma realidade e por se tratar da territorialização do capital no Corredor de Nacala, esta hipótese não pode ser ignorada. Por sua vez, Moçambique com este modelo de desenvolvimento, incorre para um Estado com a existência de populações sem-terra e sem-teto. Por isso, a ideia segundo a qual, o ProSAVANA, visa promover o desenvolvimento sustentável e inclusivo no Corredor de Nacala, é apenas um mito, pois cá entre nós sabemos que, esta missão é (quase) impossível no modelo capitalista de produção, o qual este programa se configura.
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