"O comunismo é realização integral do ser humano", diz autor que relaciona StarTrek ao comunismo
- Jornal A Pátria
- 12 de mar. de 2020
- 8 min de leitura
Em entrevista para o Jornal A Pátria, o companheiro Eduardo Freitas, autor do livro "StarTrek: utopia e crítica social" comenta seu livro e as relações da série Star Trek com a questão da superação da sociedade de classes. Esta entrevista também foi uma colaboração com a página "Comunismo de Luxo Totalmente Automatizado".

1 - Camarada Eduardo, o que você entende por uma sociedade comunista? Se sinta à vontade para desenvolver...
Eu acredito que o ser humano é mais do que um mero trocador de mercadorias em benefício de um ente privado. Portanto, eu acredito que é possível superar esse estado de coisas que, em maior ou menor grau, tem acompanhado a história da humanidade desde o seu início.
Indo além: eu tenho a convicção, com base na razão, de que a única forma de superação total dessa tragédia, que limita terrivelmente o ser humano em sua ação, em seu pensamento, enfim, em todas as facetas de sua humanidade, é a sociedade comunista. E ela só poderá ser atingida pelo estudo e pela prática do marxismo.
Será através da luta de classe, da consciência de classe, da consciência política, que poderemos derrubar de uma vez por todas a dominação que a maior parte da humanidade sofre por uma parcela minúscula de proprietários.
É através do marxismo, da filosofia da práxis, que poderemos, um dia, atingir esse objetivo.
O ser humano não é propriedade. E ele deixará de pertencer a alguém somente na sociedade comunista. O comunismo é a emancipação total e final do ser humano. É a sociedade onde existe a igualdade (que não deve ser confundida com o rude igualitarismo que Marx e Engels nos alertavam) e a liberdade, em suas formas plenas e completamente diferenciadas das concepções distorcidas - e que atendem à classe dominante – do liberalismo.
Portanto, o comunismo é isso: a afirmação humana sobre a propriedade; a emancipação do ser humano frente à exploração e à dominação; a comunidade onde o bem da maioria, desde sempre oprimida, se impõe sobre a tirania dos poucos privilegiados; a sociedade onde o poder político e econômico estão nas mãos de quem trabalha e produz e não dos parasitas que exploram o trabalho e sugam a vida do explorado.
O comunismo é a realização integral do ser humano.
2 – Partindo desse pressuposto do que você avalia como uma sociedade comunista, você considera Star Trek um universo que ambienta o mundo humano como uma sociedade que conseguiu superar a existência das classes sociais? Isso é, há comunismo no Planeta Terra ambientado em Star Trek? Ou mesmo em outros planetas da Federação?
Quando falamos de Star Trek – por mais que amemos aquele universo – devemos ter em mente que se trata de um programa de televisão. Um programa, aliás, que é produzido por uma empresa privada, que tem como único objetivo o lucro. Portanto, é sempre necessário fazer essa ressalva.
É um programa de televisão que aborda questões sociais e que mostra uma sociedade próxima daquilo que consideramos o comunismo? É. Mas, em última análise, é apenas um programa de TV.
Vou começar pelo fim, pela tua pergunta sobre a Federação.
A Federação é um exemplo de internacionalismo, calcado na razão, na liberdade e na igualdade. São aproximadamente 150 planetas (sociedades) dos mais diversos tipos que convivem sob um mesmo guarda-chuva de ideais, qual sejam, a exploração científica, o convívio com o Outro, a solução pacífica dos conflitos, a irmandade entre diferentes, o auxílio mútuo.
Note bem: todos vivem sob a mesma bandeira, porém, todos mantém suas próprias culturas, suas próprias visões de mundo, que, evidentemente, não colidem com o valor maior que é a união e a comunhão.
Portanto, a Federação é diversa, e acredito não ser possível falarmos em comunismo em todos os planetas da Federação.Até porque o comunismo será atingido pela luta e pelo marxismo. E isso, óbvia e definitivamente, não é o caso do universo de Star Trek.
Quem sabe possamos caracterizar a Federação como um tipo de socialismo utópico? O que não desmerece o papel importante que Star Trek ocupa na TV, pois é uma série que acaba, em uma relação dialética, defendendo valores opostos aos do local onde é produzida, o coração do capitalismo.
Esse fato é interessante.
A situação na Terra, que é mais explorada pela franquia, nos faz crer que as classes sociais desapareceram. Dessa forma, podemos afirmar que já não existe mais a exploração do trabalho em prol da acumulação privada de riqueza. Isso caracterizaria uma sociedade comunista? Talvez. Há a questão do Estado. A Federação, de maneira evidente, possui Estado. Lênin diz que no comunismo o Estado definha. Mas Marx nos lembra que o Estado desaparece na sociedade comunista quando pensamos na acepção que temos dele na atualidade, uma entidade que existe para manter os privilégios dos ricos e aplacar a ira dos pobres, debaixo do Direito e da violência.
A Frota Estelar anda armada. Mas já não existem mais pobres e explorados para matar. Isso significa que a função do Estado no seio da Federação é de outra natureza.
O velho Estado definhou e um novo Estado nasceu.
3 – Se sim, quando foi que você começou a notar essa relação entre comunismo, sociedade sem-classes e Star Trek? Teve algum incidente em especial na série ou nos filmes que lhes despertaram essa ideia?
Essa nova configuração do Estado, a ausência de explorados, a tecnologia que colocou as forças produtivas em um patamar quase inimaginável, libertando o ser humano da escravidão assalariada e a profunda igualdade entre os cidadão da Federação, embora tão diversos, tudo isso me fez intuir que aquilo ali era exatamente o que acredito como o futuro da humanidade.
Existem vários momentos que demonstram isso.
O capitão Picard afirma, mais de uma vez, que acumular riqueza não é mais a força motriz da vida. Isso é fantástico. A base do capitalismo, acumular riqueza, virou coisa do passado em Star Trek. De um passado frequentemente tachado como primitivo e brutal. Não vivemos em tempos primitivos e brutais, lutando pela superação da irracionalidade desse sistema demoníaco? Star Trek mostra exatamente isso. É necessário superar a sociedade de classes e o capitalismo, sob pena da humanidade perecer. Não é exatamente isso que vislumbramos no horizonte caso o capitalismo não seja destruído de uma vez por todas?
Além da exploração e da violência que a grande massa sofre diariamente há ainda a questão do aniquilamento da humanidade enquanto espécie. Isso é grave demais. Os centenas de produtores, diretores, roteiristas e atores de Star Trek estão contando essa história há mais de 50 anos. Como eu disse, é apenas um programa de televisão, mas paremos por um segundo e prestemos atenção na mensagem. Acho importante para o público leigo, para quem não conhece o marxismo, para o trabalhador que chega cansado do trabalho e quer assistir um episódio de uma série. Ele será instruído de alguma forma, mesmo que mínima, enquanto aproveita uma história.
Há outros casos que demonstram a sociedade socialista ou comunista de Star Trek.
O personagem Data, um androide, certa vez foi tratado como uma coisa. Ele é uma forma de vida consciente. Queriam desmontá-lo para aprender sua engenharia e construir uma raça de Datas. Picard, novamente, se impõe e diz: isso é escravidão! Criar uma raça inteira para nos servir. O bom e velho capitão demonstra uma ética socialista. Não adianta um liberal dizer que isso é puro liberalismo. A história do liberalismo nos mostra que ele está associado à escravidão africana até o último fio de cabelo. Muitos dizem que Star Trek representa o futuro liberal.
Quanta inocência. Ou quanta desfaçatez e má-fé. Não há nada de liberalismo ali.
Um último exemplo. Há um episódio da série clássica chamado “The Cloud Minders”, da terceira e última temporada (considerada a pior da série original, mas com alguns episódios incríveis como este).
Kirk e Spock chegam em um planeta onde a população é dividida entre aqueles que vivem nas nuvens (a cidade de Stratos, suspensa por um sistema antigravitacional) e aqueles que vivem nas cavernas, chamados de zenites. Quem vive nas nuvens dedica seu tempo à filosofia, à literatura, às artes etc. Quem vive no solo, trabalha de sol a sol na mineração, que garante enormes lucros aos habitantes das nuvens, que fornecem o produto do trabalho dos zenites para outros planetas. Nas cavernas, os trabalhadores são expostos a um gás que limita suas faculdades mentais. Dessa forma, eles não percebem a exploração a qual são submetidos, eles simplesmente não possuem consciência da sua força – já que são a maioria – e que os habitantes de Stratos, a cidade-nuvem, e assim não se rebelam. Estão cegos! É a ideologia operando, apresentada de maneira alegórica pelo episódio.
No momento em que alguns começam a se libertar dos efeitos alienantes do gás, passam a cometer atentados contra Stratos e são tratados como terroristas.
Isso é um primor, tem uma lucidez incrível, é um retrato impressionante da realidade, da opressão, da exploração, e da luta contra o arbítrio do capitalismo que, invariavelmente, é tachada como terrorismo. É um episódio que todo marxista terá grande prazer em assistir.
4 – Como questões como “Dinheiro”, “Riqueza” e “Distribuição” são tratadas no universo de Star Trek? Isso é, como é, em síntese a “economia” do universo de Star Trek? Você aborda esses temas no seu livro?
A partir do século 24 não se usa mais dinheiro na Federação. Portanto, na era de Kirk e Spock, ele ainda tem algum uso. O grande salto, que faz com que o dinheiro desapareça, é o surgimento dos replicadores, que são aparelhos capazes de fabricar, instantaneamente, desde uma xícara de chá a um instrumento musical ou ainda peças complexas para utilização nas naves.
Portanto, o que ocorre?
Desaparece, junto ao dinheiro, a possibilidade de exploração do trabalho alheio, base da sociedade de classes.
Evidentemente, se esses aparelhos fossem de propriedade privada nada disso aconteceria. Porém, eles são de acesso universal. Assim, cada um pode produzir seu alimento, suas roupas, o que desejar, sem precisar vender sua força de trabalho.
Outra consequência: o tempo livre.
Então, como Marx afirmava, o ser humano pode "pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição". É a emancipação final.
A série fala em “fronteira final”. Sem dúvida esta fronteira foi rompida, decretando o fim da pré-história da humanidade e o início de sua história. Já não é mais possível acumular riqueza, igualmente.
Contudo, há que se observar que a Federação interage diplomática, política e comercialmente com outras civilização que utilizam dinheiro.
É claro que isso nunca é explicado na série, a maneira que funciona esse comércio. Se fala muito em uma moeda chamada “latinum”, que parece ser uma moeda universal dentro da galáxia. Mas, de fato, como é de se esperar em um programa de televisão que visa o entretenimento, isso não é explicado na série.
5 – Além destas questões mais relacionadas a sociedade pós-capitalista e a emancipação humana no comunismo científico, há outros temas políticos tratados no seu livro?
No livro eu abordo o racismo, a questão de gênero, a ideologia, a escravidão, a eugenia, o nazismo, a necessidade e a racionalidade da revolução, a ciência versus o obscurantismo, a religião, o fascismo, os direitos dos animais etc.
Uma miríade de temas que foram abordados em seis séries de Star Trek, ao longo de mais de 50 anos. No livro apresento desde a série clássica até Star Trek: Discovery.
6 – Muito obrigado, pela entrevista, Eduardo. Para encerrar eu gostaria que você nos falasse qual o melhor método de adquirir seu livro, além de pedir para você comunicar todas os perfis ou páginas que costuma tratar desses assuntos na internet.
Eu que agradeço o espaço, pois houve um boicote ao meu livro, que simplesmente não foi mencionado em nenhuma publicação dedicada a Star Trek no Brasil, embora tenha sido divulgado em muitos outros veículos, inclusive da grande mídia.
Acho que isso fala mais sobre estas publicações do que da obra em si.
O fandom de Star Trek é dominado por liberais, conservadores e fascistas, que, em geral, se interessam pelas classes de naves mas não pelas classes sociais (risos).
É uma grande contradição, pois Star Trek, é, em síntese, uma obra de crítica à sociedade, pois usa o futuro para falar do presente, o espaço para falar da Terra, e as espécies alienígenas para falar do ser humano.
Então a oportunidade de poder falar do livro em um veículo como o Jornal A Pátria é uma satisfação.
Aproveito para lembrar que ministrarei, em Porto Alegre, um curso sobre Star Trek, onde abordarei as reflexões expostas no livro: https://www.facebook.com/events/533021430929915/
Para adquirir o livro: https://www.autografia.com.br/produto/star-trek-utopia-e-critica-social/
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